O Brasil no século 19 poderia ser roteiro de uma série de época com ingredientes típicos de ficção. Cenas de aventura nos mares e na terra, ameaças de invasão e violência, medo, fuga, tiros, pedras, disputas pelo poder, relações de família, personagens controversos, cenas à beira do rio, homens em cavalaria, enlaces entre povos, novos ajustes e um grito de vida ou morte para chamar outras temporadas.
O enredo só parece de ficção. Pesquisadores da história do Brasil e de Portugal constroem diferentes olhares ao contexto da Independência do Brasil, que instiga o público há praticamente dois séculos.
Desde o ensino fundamental, aprende-se que essa “série” não está relacionada unicamente à celebração do 7 de Setembro, motivo de feriado nacional. Para entender esse marco histórico, garantem os especialistas, é preciso rever causas, eventos antecedentes e efeitos. Enfim, “maratonar” os eventos que precedem e sucedem a alegoria do grito do Ipiranga, registrada pelo pintor Pedro Américo décadas depois de 1820.
São tantas reviravoltas que renderiam episódios agitadíssimos e à moda antiga: sem telefonemas ou mensagens instantâneas para organizar os atos entre pessoas que estão distantes. As ordens e os documentos do Brasil Colônia atravessam os caminhos entre metrópole e colônia por cartas depois de meses de navio pelo Oceano Atlântico e ao sabor do vento já que o barco vapor ainda era um experimento incapaz de enfrentar os mares.
O tempo é um tempero a mais nesta história: a distância entre os países criava ruídos e diminuía o peso de decisões, decretos feitos entre as cortes no Brasil e Portugal. Todos falavam português, mas a demora com que as informações atravessavam os mares, em geral, de dois a três meses, retirava as informações de contexto.
Para escritores, Revolução do Porto estimulou Independência no Brasil
A Independência do Brasil parece enredo de ficção com várias reviravoltas antes e depois de 7 de setembro de 1822. Para entender essa história, é preciso rever causas, efeitos e eventos antecedentes e efeitos. Entre esses eventos, escritores sobre a relação entre colônia e império destacam a Revolução do Porto, que completou 200 anos em 24 de agosto. A revolta liberal provocou a queda do absolutismo em Portugal e gerou diferentes ecos nos principais personagens históricos da regência portuguesa no Brasil.
Para Rezzutti a chegada dos lusos vai gerar impactos econômicos para o Brasil, que era antes uma espécie de “propriedade privada de Portugal” e virou a sede do império, enquanto a metrópole se afundava entre guerras. Os conflitos em Portugal somente diminuíram quando os ingleses conseguem expulsar os franceses do seu território. Assim, os recursos financeiros passam a abastecer mais o reino britânico e os portugueses começam a sentir os mesmos efeitos da colônia.
Enquanto Dom João decretava abertura dos portos do Brasil às nações amigas (entende-se, particularmente, a Inglaterra), do outro lado do oceano a história é de sufoco, com menos dinheiro circulando com a burguesia, uma reviravolta que a elite portuguesa não imaginava.
“O que é essa revolta do Porto? Esses comerciantes se revoltam porque Portugal está à míngua. Pouco dinheiro circulando. Caem impostos. Como o Brasil abriu os portos para Inglaterra, a elite comercial não atravessa mais as negociações com a colônia”, avalia o biógrafo.
O impacto também chegou aos tribunais de Lisboa e demais instituições que antes lidavam, na metrópole, com as burocracias da colônia. Afinal, o aparato jurídico havia mudado de terra junto a sede. “Eles sentem na pele o que o Brasil passou por 300 anos”.
A Revolução do Porto espalha-se por Portugal inteiro e acaba, na prática, com o regime absolutista. Ao serem criadas as cortes constitucionais, o rei perde o poder. A elite portuguesa no Brasil, que passava a experimentar uma liberdade diferente nos últimos 12 anos da chegada da família real, sente a mudança dos ventos.
200 anos de Revolução do Porto
Para o professor José Manuel Lopes Cordeiro, da Universidade do Minho, e pesquisador do período, a Revolta do Porto pode ser caracterizada como um “pronunciamento militar”, e não como uma revolução popular.
O assunto foi minuciosamente investigado pelo escritor portuense em obra lançada no mês passado em mais de 500 páginas. O livro 1820: Revolução Liberal do Porto foi escrito durante 15 meses com buscas a documentos inéditos sobre o episódio. “Procuramos dar uma visão abrangente do que aconteceu naquele ano, porque o pós 24 de agosto (de 1820) foi desprezado ou nem sequer abordado pela historiografia”.
Uma das descobertas trazidas à luz da história por José Manuel foi o Livro de Vereações (Livro de atas), que contém a posse da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino. “Ou seja, a fundação do regime liberal do país aconteceu na Câmara do Porto, em 24 de agosto de 1820. Sempre me surpreendeu porque é que esse livro de atas nunca foi mostrado e nem sequer é referido pelos historiadores”.
Por causa da passagem dos 200 anos do evento, o assunto tem atraído mais atenção da sociedade portuguesa. O pesquisador é o comissário responsável pela exposição sobre o tema no Museu Casa do Infante na cidade do Porto. A mostra começou em fevereiro, foi interrompida por três meses devido ao Covid-19, e está em cartaz até janeiro de 2021. Para o historiador, o furor absolutista está marcado para sempre no próprio livro de ata. Em reação contra os liberais naquele país, o livro de vereações foi rasurado com tinta corrosiva em uma tentativa de apagar os registros em uma reviravolta de lideranças absolutistas.
Ao mesmo tempo em que ocorrem as transformações liberais em Portugal, José Manuel Cordeiro considera que a sociedade brasileira encontra-se em uma “efervescência” cultural, política e ideológica”, além de já possuir uma infraestrutura de Estado. Os revoltosos na Europa reivindicam que Dom João retorne à metrópole. Em fevereiro de 1821, uma manifestação no Rio de Janeiro exige que o rei jure obediência à Constituição.
Os acontecimentos de 26 de fevereiro de 1821 traduzem o momento. Não se sabia qual seria a reação de Dom João VI. Foi a contragosto, segundo os historiadores, que o rei volta para Portugal intimado pela elite do seu país. Inclusive, ele chegou a anunciar que mandaria o filho Pedro para “ouvir as queixas” e tranquilizar os revoltosos. Nada feito. Quem retornou a Portugal foi o próprio Dom João IV.
Antes de zarpar, ele orientou o filho sobre a instabilidade entre coroa e colônia. Ao chegar em Portugal, João descobriu, da pior forma, que não é mais ele quem dava as cartas: precisava de autorizações para descer do navio e tomar decisões.
Na opinião da professora Teresa Marques, da Universidade de Brasília, a Revolta do Porto é um movimento que mostra o ressentimento e o mal-estar da elite portuguesa.
O pertencimento à Independência
Para os especialistas entrevistados, os episódios desta série da vida real estão todos associados uns aos outros, enlaçados em seus significados. Inclusive, aos sentimentos de brasilidade do público. “Quando pensamos ter a necessidade de tratar do que aconteceu com o Brasil há 200 anos, é porque encontramos algum laço entre o presente e o passado. Esse vínculo se estabelece como forma de comemorar e de lembrar. A razão para contar essa história é para criar vínculos de pertencimento”, afirma o historiador Deusdedith Rocha Junior.
Os referenciais desse “pertencimento”, conforme explica Deusdedith, devem levar em conta que o que vai ser lembrado nesse roteiro é fruto de uma “disputa”. O conflito permanente está na raiz de todo o processo. A disputa entre os poderosos da época tem diferentes marcos, como a fuga da família real portuguesa nos dias finais de novembro de 1807 para a colônia Brasil, aonde chegaria somente em 22 de janeiro de 1808. Dom João VI, o príncipe regente português, não viu outra saída, depois que o país foi ameaçado de invasão pelas tropas do imperador francês Napoleão Bonaparte, já que Portugal não havia aderido ao bloqueio continental contra a Inglaterra.
Dom João resolveu apostar em uma aventura e embarcou a família inteira, incluindo a mãe, Maria, a esposa, Carlota Joaquina, os filhos, Pedro e Miguel, e outros integrantes da corte em navios e rumaram para o país desconhecido. Ao saber que os poderosos fugiam, a população teria atacado os navios reais inclusive com pedras. Para os pesquisadores, os caminhos da independência brasileira começam a tomar forma nesse episódio inusitado.
Fonte: Agência Brasil