Os conceitos de ancestralidade ou ascendência indicam uma conexão geral com pessoas ou coisas do passado.
Num conceito genético, porém, eles têm um significado mais específico. Nossos ancestrais ou ascendentes são as pessoas das quais descendemos biologicamente.
Tenho mania de pesquisar minha ancestralidade, principalmente quando encontro alguém com o meu sobrenome.
Conheço pessoas que tem o pensamento muito diferente do meu. Para elas, pesquisar o passado é delírio, coisa de gente doida, pois não adianta cultuar quem já morreu, se a morte é o fim de tudo. Quanto mais distante o passado, mais elas fazem questão de esquecer e não tocar no assunto. Não querem nem sequer saber de velharia, como móveis antigos e fotos emolduradas, postas nas paredes.
Batem de frente comigo, quando vem ao meu apartamento, e encontram uma das paredes da minha sala repleta de fotos emolduradas, de entes queridos que já partiram, e que eu faço questão de cultuar.
Sou, exatamente, o oposto delas. Vivo olhando o mundo pelo retrovisor do tempo. Preservo fotografias de familiares queridos, que não se encontram mais neste plano. Vivo pesquisando o passado e alimentando a minha saudade. Não é masoquismo. É saudade mesmo.
Mas, reconheço que cada pessoa pensa de um jeito, mesmo tendo o mesmo sangue.
Guardo poucas lembranças do meu avô paterno, Manoel Ursulino Bezerra, natural de Nova-Cruz (RN), pois ele se encantou quando eu era ainda muito criança.
Por outro lado, convivi bastante com meu avô materno, Professor Celestino Pimentel, pois fui sua hóspede, ao deixar Nova-Cruz (RN) para cursar a Escola Normal em Natal, a nível de segundo grau.
Meu avô Celestino tinha o porte de um lorde inglês. Era alto, corado, forte, elegante, bonito e culto; muito sério, impunha respeito e simpatia. Só vestia terno azul-marinho de casimira inglesa e camisa branca de mangas compridas. Usava chapéu e bengala, quando mais velho.
Parecia o personagem de “O Professor Alsaciano”, poema de autoria do poeta português Acácio Antunes (1853 – 1927).
Pesquisando a ancestralidade do meu avô materno, Professor Celestino Pimentel, encontrei no Livro das Velhas Figuras, de Luís da Câmara Cascudo, volume II, Edição do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte – 1976, a história do seu avô, que também se chamava Celestino, e a do seu pai, Arsênio Celestino Pimentel.
Pois bem. Diz a biografia “O Velho Arsênio”, que integra o Livro das Velhas Figuras, volume II, de Luíz da Câmara Cascudo: “O Coronel Celestino Pimentel, do Exército Português, tinha seu solar na Vila Nova de Portimão, castro velho com pedra d’armas ilustre, onde surge, lendário e fulvo, um leão na chapa do escudo.
Casou em família de França. Dois filhos nasceram, alegrando a beleza da Quinta dos Três Bicos, casa solarenga dos Pimenteis, ramo fidalgo que se fixara nos Algarves.
Começa a idade dos estudos. Bernardo Celestino, o primogênito, seguiu para a Universidade de Coimbra, onde se bacharelou em Direito. O segundo, Sizenando Celestino, repetindo a viagem fraterna, voltou engenheiro.
O Coronel Celestino Pimentel vê, jubiloso, o início da carreira dos filhos. Mandou o primeiro para a administração e o outro para o Exército, fiel à trilha paterna.
E morreu tranquilo, confiante no destino dos filhos. A viúva, grávida, deu à luz, em 16 de abril de 1830, a um póstumo. Chamou-se Arsênio Celestino Pimentel. (Este viria a ser o pai do Professor Celestino Pimentel, nascido em 21.6.1884 e falecido em 11 de dezembro de 1967, em Natal).
No tempo justo enviaram Arsênio para Coimbra. Havia de ser médico.
Essa era a época convulsa na terra de Portugal. Era a fase de bronze que imobilizava figuras hirtas e grandes de patriotas e soldados valentes. Costa Cabral domina, desmarcado, imponente, desdenhoso, abrindo caminho entre as montanhas de ódio, insensível ao medo, à covardia, sem recuar, sem ceder.
Dona Maria II, a Rainha que nascera no Brasil, irmã de D. Pedro II, debate-se entre vinte partidos antagônicos, frementes, intolerantes.
Contra Costa Cabral o povo eleva ondas imensas de cóleras. Uma após outra, as guerrilhas estalam, enfrentadas pelo ministro imperioso e duro.
Dona Maria teme. Despede Costa Cabral. Chama o Duque de Palmela, dúctil, hábil, maneiroso, polido, senhorial. Chama Mousinho de Albuquerque, o legislador do Duque de Bragança, que fora Rei de duas pátrias e doador de duas coroas. O Duque da Terceira é nomeado lugar-tenente do Norte. Explode o golpe- de- Estado de 6 de outubro de 1846.
Outro Duque, o de Saldanha, soldado grande e valoroso, neto do Marquês de Pombal, guerreiro que perdia no Parlamento e que ganhava nos campos de batalha, é o senhor da situação.
A cidade do Porto reage. Cria a Junta de Governo que o conde das Antas preside e onde os Passos (José e Manuel) mandam. Sá da Bandeira aderiu à revolução. A junta tem tanta popularidade quanto é infeliz. O Barão de Casal derrota Sá da Bandeira. Saldanha espatifa as hostes do Conde do Bonfim.
Mas, para que haja a paz, é preciso força moral que não existe no país. Intervém as potências. O General Concha traz a Espanha no seu Exército. Uma esquadra inglesa imobiliza a esquadrilha que a Junta possuía, literária e romanticamente.
Mas inda se luta. Vinhais acaba com a resistência do Visconde Sá da Bandeira, batendo-o no alto do viso.
No meio desses combates, escaramuças, guerrilhas, encontros, ataques e saques, soa a voz aguda das mulheres, dos homens do campo, dos estudantes que fugiam de Coimbra e vinham na turba doida e brava, cantando a “Maria da Fonte”. (A instigadora dos motins iniciais tinha sido uma mulher do povo chamada Maria, natural da freguesia de Fonte Arcada, ou Fontarcada, que por isso ficaria conhecida pela alcunha de Maria da Fonte. Como a fase inicial do movimento insurreccional, teve uma forte componente feminina, acabou por ser esse o nome dado à revolta).
Os Passos, José Estevão, os liberais do Porto são da Maria da Fonte. Ela é um auxílio. Populariza a revolução. Espalha os nomes. Divulga o ideal. A convenção de Gramido, a 10 de junho de 1847, assegura uma tranquilidade momentânea.
Arsênio Celestino Pimentel, abandonando expositores e cadáveres, mestres e tricanas, fados e guitarras, metera-se na revolta. Andava no meio, arrastando um espadagão comprido, com duas pistolas na cinta de seda vermelha e um lume de cigarro saloio no canto da boca juvenil. Tinha dezessete anos. Batera-se em todos os encontros. Uma bala partira-lhe a mandíbula. Golpes fundos de sabre rendava-lhe o pescoço e o tórax. Continuava afoito, alegre, irrequieto, dançador do chegadinho e vai-de roda, mestre do varapau, guerreiro sem soldo, pronto para bater-se e a morrer.
Os irmãos, entretanto, vencem, sobem. Bernardo é Governador dos Açores. Sizenando é oficial do Corpo de Engenheiros. Ambos são estudiosos, sisudos, impassíveis, na tradição clássica dos algarvinos aristocráticos.
Em 1849, Costa Cabral volta ao poder. A Rainha fá-lo marquês de Tomar. Uma política de reação, de economia feroz, de energia trepidante se inicia. Tomar repete o nosso Feijó, o ataque uniforme às hidras incontáveis. O fogo das insurreições crepita novamente.
E Arsênio Celestino Pimentel desaparece da Universidade, segura as pistolas, afia o sabre, retomando seu canto na mata sem nome e esquecimento. Tomar reage. Expulsa, exila, despede, demite, prende.
Arsênio foge. Vai até os Açores. Recusa assinar o pedido de indulto a Rainha, como o irmão lhe pedia. Não pisará areia de Portugal, enquanto reinar Da. Maria II. Decide-se pelo Brasil. Pernambuco.
Arsênio é alto, forte, ágil, bonito. Toca piano, entende de medicina, entende de tudo. Ensina, clinica, negocia. Tem nome, devotos, relações.
Os Antunes de Oliveira, fixados no vale do Ceará-mirim, rogam sua presença no Rio Grande do Norte. Arsênio cede. Em 1873, está em Natal, para sempre.
Por aqui viveu com vária fortuna.
O tempo pintou de branco sua barba. Era salineiro, pequeno proprietário, dava remédios. Ainda vivem ex-alunas de piano. Administrou a “Colônia Sinimbu”. Defendeu-se tão cabalmente, quando acusado, que o austero Visconde de Sinimbu enviou-lhe uma carta de felicitações.
Casou. Os filhos vieram. Antônia Perpétua, esposa de José Cândido Céa, da Marinha Mercante, CELESTINO, professor e várias vezes diretor do Atheneu Norte-Rio-Grandense, Arsênio, que viajou para o Norte, não dando notícias, e Maria Rosa, casada com Luiz Damasceno Bezerra.
Toda a cidade o conheceu e respeitou. Era o Velho Arsênio.
A 17 de agosto de 1916, na fazenda “Mororó”, Lajes (RN), faleceu Arsênio Celestino Pimentel, o guerrilheiro da “Maria da Fonte”, o acadêmico de Coimbra, fidalgo da Quinta dos Bicos, no reino dos Algarves.”