A ARCA DA MEMÓRIA –

A psicologia social das redes quer nos ensinar a esquecer do passado. Teimoso e nostálgico, o que eu realmente nunca esqueço é de visitar o meu baú, aquele onde preservo, com ferrenho saudosismo, a lembrança que ainda me resta das coisas e das pessoas.

DOUTOR JACOB

Aos quatro anos de idade, fui acometido de uma violenta infecção no olho direito. Eram os anos 1950, e grandes as dificuldades para o tratamento. O problema ficou sério e meus pais – não sei por que meios – obtiveram ajuda com o melhor – talvez único – oculista de Natal, o doutor Jacob Wolfson.

O tratamento não chegou a terminar. No dia 12 de julho de 1951, o doutor Jacob morria em desastre de aviação, em Sergipe, integrando a comitiva do jovem governador Dix-Sept Rosado, que também morreu no acidente, antes de completar o primeiro ano do seu mandato. A tragédia que abalou o Estado, também complicou a minha recuperação.

AQUELE CASAL

Era uma casa comum, como em qualquer comunidade pobre.   Uma janela, e a porta principal dividida em duas, permitindo fechar a parte de baixo, ficando aberta a de cima. Dela, um casal unido, sem filhos, era alvo de comentários no bairro.

Pela manhã, encenavam a romântica despedida de todos os dias, quando ele saia para o trabalho. Ficavam acenando, ela, da porta e ele caminhando e voltando-se a todo instante, até dobrar a esquina. Singelos gestos de carinho, quem sabe, amor.

Durante as refeições, uma extravagância. À mesa, cuspiam e até escarravam no prato um do outro, e só então comiam o alimento.  As portas eram fechadas e a mesa era na sala. Os garotos disputavam as brechas da janela e da porta para verem as grossas cusparadas despejadas na bizarrice. Fui testemunha do ritual.

JOÃO MATA-PORCO

Seu João vivia do abate de animais, principalmente o que designava o apelido. Mas carneiros, bezerros, bodes e até galinhas, também passavam pelo seu afiado cutelo. O quintal de casa, sujo, úmido, insalubre, era o matadouro para onde, semanalmente, acudia a vizinhança para comprar os cortes, pesados na tosca e inconfiável balança, auxiliar da tarefa.

 Um grosso e indescritível bigode filtrava os versos desafinados e rudes que intentava cantar, enquanto descarnava um osso ou trinchava um pedaço de carne. Foi lá, na casa de João Mata-Porco, que eu, com atento ouvido musical, aprendi esta singeleza:

Calango matou um boi / Pendurou os quarto na têia / Lagartixa foi bulir / Calango meteu-lhe a pêia. / É isso que acontece / A quem bole nas ‘coisa’ alheia”

SEU CELSO E DONA JULIA

Com um jeitão de aristocrata da roça, Seu Celso falava pouco, tinha uns bigodões do século dezenove, que zelosa e diariamente enrolava e espichava com o auxílio de um palito de fósforo. As calças eram seguras pelo cinturão por fora das alças do cós. Morava com dona Júlia, a esposa de voz mansa e contida das mulheres bem criadas, bem educadas. Eram padrinhos do meu pai, e referência para os vizinhos.

Um dia – ninguém soube por que – o casal ficou “de mal”, passando vários anos sem se falar. Isso mesmo. Convivendo, atendendo-se mutuamente, mas intrigados, sem conversarem entre si. Dizem que foram onze anos!

Dona Júlia fez promessa pela reconciliação e a filha única, adotiva, que morava no Rio de Janeiro, deu-lhes um ultimato. Ou desistiam da pendenga ou ela não falaria mais com os dois. Como efeito da promessa – ou da ameaça – de uma hora para outra ficaram novamente de bem, e tudo voltou ao normal.

Para alegria de todos e a felicidade geral da Guarita.

 

 

 

Alberto da Hora – escritor, cordelista, músico, cantor e regente de corais

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