A BIBLIOTECA DE MELK –

Na autoestrada que liga Innsbruck, passando por Salzburgo, a Viena, muito provavelmente a rota turística mais badalada da Áustria, apenas 60 km a oeste da capital do país, fica um dos mais interessantes templos dedicados aos livros que já visitei: a “Biblioteca da Abadia de Melk”.

A pequenina cidade de Melk, que hoje tem pouco mais de cinco mil habitantes, fica também na margem do Danúbio, sendo considerada uma das “joias” desse famoso rio. É uma bela “cidadezinha”, não posso negar, mas, com certeza, sua “preciosidade” reside na Abadia beneditina que, do alto de um promontório, domina sua paisagem.

Para quem não sabe, Melk foi a sede original da casa Babenberg, dinastia que, com seus condes e duques (chamados, em verdade, de “margraves”), originalmente dominou, entre os séculos X e XIII (976-1246, aproximadamente), boa parte do que hoje chamamos de Áustria. A história da Abadia de Melk está relacionada aos Babenbergs. Como consta do “Guia Visual Folha de São Paulo – Áustria” (PubliFolha, 2010), que consultei para produzir este riscado, “no século 11, Leopoldo 2º [1050-1095] convidou os beneditinos da abadia de Lambach para se instalarem em Melk, e deu aos religiosos terra e um castelo, que os monges transformaram em uma abadia fortificada”. Vítima de várias vicissitudes em seu um milênio de história, “quase destruída por um incêndio em 1297, [a abadia] foi reerguida várias vezes e, no século 16, precisou resistir aos ataques turcos. Em 1702, o abade Berthold Dietmayr [1670-1739] começou a remodelar o local. Jakob Prandauer [1660-1726], von Erlach [1656-1723], Joseph Munggenast [1680-1741] e outros nomes famosos ajudaram a dar à construção a magnífica forma barroca atual”. No final do século passado, já entrando para os 2000, a Abadia de Melk passou por uma grande restauração. Foi dotada de um bom museu contando sua história. Tem recebido exposições de arte e sido local de apresentações teatrais e de música. As atividades religiosas e docentes, é claro, continuam de vento em popa. Patrimônio da humanidade pela UNESCO, ela é belíssima. E ponham belo nisso.

Os pontos altos da Abadia de Melk – para além da quase perfeita harmonia do seu conjunto – são sua igreja e sua biblioteca.

A igreja – caracterizadamente barroca – é um esplendor em “glória de Deus”.  Dedicada a São Pedro e São Paulo, sua composição atual decorre das intervenções realizadas, no século XVIII, pelo já referido abade Berthold Dietmayr. Ali trabalharam arquitetos e artistas como o já citado Jakob Prandauer, Antonio Beduzzi (1675-135), Johann Michael Rottmayr (1656-1730), Paul Troger (1698-1762), Giuseppe Galli-Bibiena (1696-1757), Lorenzo Mattielli (1687-1748) e Peter Widerin (1684-1760), entre outros. O resultado é belo, exuberante e dramático, como sói acontecer com as grandes obras do barroco.

Já a tal biblioteca de Melk, também em estilo barroco, tem seu interior marcado por uma madeira clara perfeitamente trabalhada, afrescos do já citado Paul Troger e por uma magnífica escada em espiral que a liga à igreja dedicada aos apóstolos Pedro e Paulo. Em uma dúzia de ambientes belíssimos, ela abriga mais de 100 mil volumes, entre os quais cerca de 2000 mil manuscritos e outro tanto de incunábulos. O acervo é variado: além das Bíblias, muitas obras de teologia, filosofia, astronomia, história, geografia, línguas e até do enfadonho direito.

Por sinal, eu já me referi aqui à Abadia de Melk e à sua biblioteca, quando escrevi, faz alguns anos, sobre o romance “O nome da rosa” (de 1980 e, no original, “Il nome della rosa”), do meu querido Umberto Eco (1932-2016), assim como sobre o filme homônimo (de 1986 e, no original em alemão, Der Name Der Rose”), adaptação do livro, dirigido por Jean-Jacques Annaud (1973-) e estrelado, entre outros, por Sean Connery, Christian Slater e F. Murray Abraham. Em “O nome da rosa”, alegadamente, Eco reproduz um manuscrito de um frade chamado Adso de Melk que, quando jovem, teria presenciado os terríveis acontecimentos narrados no livro. Esse manuscrito teria ficado escondido, por séculos, no mosteiro de Melk. E quem já leu o livro ou assistiu ao filme sabe, o enredo de “O nome da rosa”, ambientado em uma “sinistra” abadia medieval e na sua ainda “mais sinistra” biblioteca, gira em torno das mortes de sete monges nos sete dias seguidos, em circunstâncias para lá de extraordinárias. Mortes que, a pedido do Abade, o protagonista Guilherme de Baskerville, ajudado pelo seu pupilo Adso de Melk, tenta desvendar. E isso tudo coincide com um encontro para discussão de intricadas questões teológicas, previa e cuidadosamente acertado para se dar na antiquíssima abadia, entre frades franciscanos e uma legação papal, da qual faz parte um dos maiores inquisidores da história (real) da Igreja, Bernardo Gui (1261-1331).

Foi propositadamente nas pegadas de “O nome da rosa” – essencialmente uma estória sobre livros – que, na companhia dos meus pais, fui visitar, faz muitos anos, pela primeira vez, a Abadia de Melk.

Mas é claro que a biblioteca da Abadia de Melk não é – nem mesmo se parece com – a grande biblioteca do convento da Ordem Beneditina, palco dos acontecimentos narrados no romance de Eco, onde estariam guardadas – ou, melhor, escondidas – maravilhas da escrita e da arte das iluminuras, majoritariamente de origem grega e latina, algumas delas heréticas, numa época em que, antes da invenção da imprensa por Gutenberg (1400-1468), a Igreja detinha, no Ocidente, o monopólio do conhecimento. A biblioteca da Abadia de Melk não é o labirinto “borgeano”, infinito e cheio de desvios, descrito e desenhado no livro de 1980 e maravilhosamente mostrado no filme de 1986. Na biblioteca da Abadia de Melk não está guardado o último exemplar de um suposto segundo livro da poética de Aristóteles, desaparecido há séculos e que versaria, favoravelmente, sobre o riso, o móvel dos muitos crimes praticados (pelo venerável e cego monge Jorge) no meu romance preferido.

O que foi para mim, sonhador, quando da nossa visita à biblioteca de Melk, confesso, um pouquinho decepcionante. Mas só um pouquinho mesmo.

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *