Estrasburgo – localizada na Alsácia, belíssima região na fronteira nordeste da França, limitada pelo rio Reno e conhecida produtora e rota turística de vinhos (vide as cidades de Colmar, Eguisheim, Riquewihr, Ribeauvillé e outras mais) – se autodefine como “a cidade europeia”. Tendo estado lá há menos de um mês, num périplo pela Alemanha, Suíça e essa beirada da França, dou o meu testemunho, de ciência própria, nesse sentido.
Antes de mais nada – e isso é muito interessante para nós profissionais do direito –, Estrasburgo é sede de várias instituições europeias (relacionadas não só aos países que formam a União Europeia propriamente dita, registre-se), entre elas o “Parlement Européen” (“Parlamento Europeu”), o “Conseil de L’Europe” (“Conselho da Europa”) e, muito importante para nós juristas, a “Cour Européenne des Droits de L’Homme” (“Corte Europeia de Direitos Humanos”). Isso sem contar com o “Médiateur Européen”, o “Institut Intenational des Droits de L’Homme”, a “École Européenne”, o “Centre Européen de La Jeunesse” e por aí vai. Tudo concentrado no chamado “Quartier Européen” (“Bairro Europeu”), que merece ser visitado não só por aqueles com formação legal. Ali há, também, toda uma estrutura – exposições permanentes e temporárias, documentários, animações etc. – direcionada a informar o grande público, os locais e os turistas, os adultos e as crianças, sobre as instituições europeias, a história do Continente e a ligação de Estrasburgo com isso tudo.
Estrasburgo é, portanto, de direito e de fato, ao lado de Bruxelas (sede do Poder Executivo europeu) e de Luxemburgo (onde fica o Tribunal de Justiça da União Europeia), uma das “capitais da Europa”.
Mas não é só isso. Como lembra um informativo do “Lieu D’Europe” (centro educacional em prol da cidadania europeia, que fica no já referido “Quatier Européen”), “a decisão de ter Estrasburgo como capital europeia após a Segunda Guerra Mundial não aconteceu por acidente. A história de Estrasburgo e a história da Europa têm estado vinculadas desde há muito tempo. Outrora capital da imprensa e berço do humanismo renano, Estrasburgo tem mudado ao longo dos séculos entre França e Alemanha, antes de se tornar um símbolo dos conflitos europeus e, finalmente, de sua reconciliação. Local para os povos fortalecerem a cooperação pacífica, Estrasburgo é também um lugar onde o diálogo democrático é exercido através de assembleias parlamentares que levam a integração europeia para além de um simples mercado comum em direção a um genuíno destino comum”.
De fato, a localização e, sobretudo, a história para lá de conturbada de Estrasburgo fazem com que ela também mereça a alcunha, um tanto quanto ambígua, de “encruzilhada da Europa”. Para se ter uma ideia, a história dessa comuna retroage a antes de Cristo e à dominação romana por aquelas bandas, quando, acampamento de legionários fundado por um tal de Nero Cláudio Druso (38 a.C.-9 a.C.), era chamada de Argentorato. Foi incorporada ao Império Franco. Foi cidade livre do Sacro Império Romano-Germânico. Entretanto, nos últimos dois ou três séculos (mais precisamente, desde 1871, quando da Guerra Franco-Prussiana), ela alternou de pertencimento, pelo menos quatro vezes, entre a França e a Alemanha (no seu princípio liderada pela antiga Prússia). Tudo isso junto, somado ao fato de ser também uma cidade universitária, faz com que Estrasburgo tenha hoje uma atmosfera verdadeiramente cosmopolita.
No mais – e isso não tem nada a ver com o direito –, Estrasburgo é belíssima. Posso dizer que, na nossa viagem, foi a cidade que mais nos impressionou. Olhem que estivemos em umas vinte cidades da Alemanha e Suíça, algumas até maiores e mais badaladas do que ela.
A hospedagem ali é fácil e, para os padrões europeus, em conta (ficamos num tal “Grand Hotel”, bom e barato, localizado no número 12 da Place de la Gare de Estrasburgo). Circundado por um canal e pelo rio Ill, o centro de Estrasburgo é facilmente percorrido a pé. E mesmo que assim não fosse, o sistema de transporte, sobretudo os bondes que cruzam a cidade, que utilizamos para ir ao “Quartier Européen”, é nota 10. O miolo do centro, ao derredor da Praça Kleber e da Catedral, tem um comércio bem movimentado (incluindo uma FENAC, a pequenina “Librairie Broglie” e a imensa e excelente “Librairie Internationale Kleber”, todas devidamente visitadas).
Partindo da Catedral em direção ao rio Ill, corre uma pequena rua de pedestres (Rue du Maroquin), cheia de restaurantes, que é parada obrigatória para uma refeição ou uma taça (quem sabe, muitas) de vinho da uva “gewürztraminer” (que prefiro à “riesling”). Tem também a “Petite France”, um pequenino bairro da cidade, outrora dominado por curtumes, cheio de canais, pontes e restaurantes. As muitas taças de vinho podem ser tomadas também ali, a gosto de quem paga. Há, aliás, um passeio de barco pelo rio/canal de Estrasburgo, em que se avistam suas muitas pontes, com destaque para as “ponts courverts” e a “barrage” construída pelo marechal e engenheiro militar Vauban (1633-1707), nas beiradas da tal “Petite France”.
Na verdade, a cidade tem muito mais coisa para ver.
Mas se me é dado apontar um destaque em Estrasburgo, escolho a sua Catedral que, iniciada no século XI e só terminada em 1439, acompanhando a atribulada história da cidade, já atendeu tanto à fé católica como à protestante. Pelo que li e constatei, ela tem alguns aspectos românicos, mas a sua nave é mesmo gótica. É colossal. Já tendo sido o mais alto edifício do mundo, ainda é hoje uma das cinco mais altas igrejas da Cristandade. Sobre a enorme Catedral, segundo li no “Guia Visual Folha de São Paulo – França” (PubliFolha, 1996), certa vez observou o grande escritor alemão Goethe (1749-1832), que estudou direito em Estrasburgo: “Uma obra-prima do trabalho rendilhado em pedra, esta catedral em arenito ‘ergue-se como a mais sublime árvore de Deus, com amplos e abobadados galhos’”.
Ela é realmente de tirar o fôlego. O portal central da entrada oeste, trabalhado em pedra de um vermelho opaco, ornamentado de estátuas, é simplesmente belíssimo. Constatamos isso imediatamente, abasbacados, antes mesmo de entrarmos na dita cuja. Na noite em que lá chegamos, houve uma apresentação em seu derredor, acho que era um balé, mas que sobretudo jogava luzes, de todas as formas, cores e tonalidades, na gigantesca catedral. Como poucas vezes aconteceu comigo, “fiquei” literalmente deslumbrado. “Ficamos” (no plural, posso dizer) quase em êxtase. E olhem que já tínhamos visto muitas igrejas bonitas nesta e em outras viagens pelo Velho Continente.
E esse êxtase, reasseguro, assim como no caso do estudante Goethe, não tem nada a ver com política e direito.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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