A HORA FINAL –
“Nasci ás dezenove horas. Portanto, quero que tudo acabe no mesmo horário.”
O Liebestraum número 3, em Lá bemol, de Liszt toca suave na vitrola do quarto.
“Fiz quase tudo que quis na minha vida”, disse o rapaz para o médico em um hospital em Calcutá, na Índia, “…me arrependi algumas vezes, outras não. Não irei me arrepender desta decisão. Ah, não! Desta eu não irei!” Fechou os olhos e respirou fundo, como se fosse esforço demais deixa-los abertos. “Além disso, estou pagando! ”
“O problema, senhor, não são quantas rúpias terá de me pagar. O problema é outro…”
“Qual?”
“…reflita.”
“Bobagem.”
“Egoísta….”, retrucou o médico, ajustando seus óculos.
“Quando eu era criança, por volta dos meus nove ou dez anos, fugi escondido no vagão de um trem. Atravessei toda a Índia. Sozinho. Tive muito medo, mas fiz assim mesmo. Passaram-se setenta anos, e ainda lembro da jornada.”
Uma nova música começa a tocar: Debussy , Clair de Lune.
“Aprendi muito, doutor. Com o passar dos anos, aprendi bem mais sobre aquela viagem. Conheci o desconhecido porque tive coragem. Coragem, doutor. Essa é a palavra. Eu peço coragem… além disso, não é o senhor que está na minha condição… ligado a máquinas e com agulhas por todos os lugares…”, Tossiu…
“È bom poder ouvir o relato de uma experiência, direto da boca daquele que vivenciou o momento, mas o que você deseja fazer, não lhe dará essa oportunidade, entende? ”
Os dois se entreolhavam com atenção.
“Mas trata-se de coragem, doutor. Coragem, entende!? E o doente sou eu…., doutor.”
“LOUCURA!!! Como posso apreciar sua coragem…”, disse o médico.
O velho pausou pensante. O espírito aguou-lhe os olhos.
O singular efeito de uma lágrima formando revelou sua emoção. O soro estava à sua direita… Sobre a mesa, a solução a ser usada, as bandejas de aço inoxidável com algodões e agulhas expunham a frieza dos hospitais.
“Será mais uma experiência doutor. Mais uma decisão que posso fazer, enquanto tenho a consciência dos meus desejos. Tenho pouco tempo. Mas tenho o poder de decidir por mim”, falou firme. Em seguida, respirou fundo, repondo ar aos pulmões.
O doutor levantou e andou em círculos pelo quarto por algum tempo. Mãos para trás, fitava o chão com profunda contemplação.
A penumbra da noite chegou rápido.
O médico, então, dirigiu-se até o equipamento e, sem preâmbulo, iniciou todos os ajustes e dosagens com determinação profissional.
O relógio de parede lia dezoito e cinquenta.
“Coragem, doutor!”, incentivava o paciente.
Por alguns minutos, ouvia-se apenas as melodias vindas da vitrola.
“Segure esse controle. Quando você estiver pronto…”, tossiu repetidamente procurando procrastinar o inevitável, “…aperte o botão preto para liberar a solução”, Falou o doutor, cruzando os braços… então, recuou três passos. O suor brotava das têmporas… Com um lenço de bolso dava leves retoques na face… principalmente sobre a testa, de onde a transpiração parecia originar com maior vigor…
As primeiras gotas escorreram com rapidez pela cânula virgem, entraram na agulha e seguiram de veia adentro. Não demorou e o senhor olhou apático para o doutor, até que veio o primeiro espasmo e os olhos se arregalaram. Enquanto uma das mãos agarrava firme a lateral do colchão a outra se entendia trêmula em direção ao médico buscando consolo ou salvação….
Na vitrola a melodia triste do Impromptu número 1, em Dó menor, de Schubert, trazia em sua cadência ritmo análogo ao da frágil vida que se exauria em gradativa lentidão, sobre a cama do hospital, na hora final…
“Desejo apenas uma resposta”, o doutor se apressou na pergunta “o que sente agora, coragem, ou arrependimento???”
Silêncio…
O relógio, no alto da parede, gongou sete badaladas…
Oba: Esse conto teve uma premiação (há mais de dez anos) num concurso internacional de contos Machado de Assis, em Minas Gerais….
Charles M. Phelan – Advogado e Professor