A leitura é cada vez mais um ato de suma relevância para a aprendizagem do ser humano. Em tempos de alienação fácil e sugestionável das mídias fascinantes, ler boas obras deveria ser um mandamento de autorresgate da própria existência sociável. Além de apurar o vocabulário, instiga o raciocínio e a interpretação, torna proficiente em variados questionamentos, alarga a visão de mundo. A pessoa se instrui e entra no debate nacional com isenção de ânimo, favorecida pela informação e pelo conhecimento, fatores essenciais, principalmente, em tempos de debates e eleições gerais.
Em pesquisa recente do Instituto Pró-Livro (SP), revelou-se que 44% da população não leem e 30% nunca compraram sequer um livro. Tal constatação não é encorajadora em termos de democracia plena, nem para nos considerarmos como uma sociedade justa e qualitativa.
Do traço irônico da autora do Tratado das coisas insignificantes, Pâmela Filipini, quando sentenciou: “Livro vem do verbo livrar, tendo como principal objetivo livrar-te da ignorância”. Eu diria que, no mínimo, a objetivação de conteúdos apreendidos pode mesmo chegar à libertação do homem que vive hoje em complexas e desiguais sociedades como a nossa.
A leitura também se insere no terreno fértil da cultura, e o nosso mundo brasileiro evoluiu desde o cordel, o folhetim de feira, costumes que proporcionaram rudimentos do idioma complexo que é o português. Boa prática a inserir em suas vidas, ler estimula a criatividade, faz despertar a imaginação, ainda contribui para exercitar a memória. Enfim, a leitura é uma aptidão que pode facilitar a pessoa em diversos campos de atividade. Particularmente na ocupação profissional ou carreira, e até mesmo nas relações amorosas. Ainda que na construção afetiva da personalidade.
Intrinsecamente a essa abordagem, a língua portuguesa nos legou autores de relevo memorável, assim nos vem à mente, do continente de berço, Camões, Camilo Castelo Branco, Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz, Almeida Garret, Fernando Pessoa, Miguel Torga, José Saramago entre nomes consagrados da preciosa herança da literatura d’além mar. Do Brasil, emergem até nossos dias uma plêiade de apregoados autores da nacionalidade, da estatura de Gregório de Matos Guerra, José de Alencar, Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Castro Alves, Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Érico Veríssimo, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Cabral de Mello Neto, Vinícius de Moraes, Ariano Suassuna, Cora Coralina, asseverando que a série crescente de notáveis escribas da terra é sobeja em inteligência e talento.
Em igual dimensão, é vastíssima a obra disponível por inegáveis e criativos autores provindos dos países lusófonos.
Vê-se, com isso, que não há carência de virtudes ou pretextos vazios que possam fundamentar recentes pesquisas que revelam a piora de avaliação entre estudantes brasileiros no desperdiçar da útil soma de conhecimentos inerentes à competência da leitura.
Uma das explicações correntes refere-se à preferência e ao magnetismo atrativo das produções audiovisuais, e mesmo à ferramenta de praticidade do livro digital. Deste, em analogia, eu diria que flores naturais ainda são mais cativantes do que corbelhas artificiais.
O dia 10 de junho marca a celebração de uma efeméride para a língua portuguesa e para o humanismo, o dia de Camões. Nesta data é assinalada a passagem de mais um ano de morte do poeta Luís Vaz de Camões, cujo passamento de registro deu-se no ano de 1580. Autor de Os Lusíadas, obra monumental dividida em dez cantos, publicada em 1572 no período literário do classicismo, em estrofes variáveis. Poesia épica, cujo enfoque centrou-se na descoberta do caminho marítimo para a Índia pelo navegador Vasco da Gama, notabilizando o povo português. Ler Camões bem pode nos representar o ato da leitura, e, ao lê-lo, sobressai a importância do saber adquirido nos campos históricos e literários.
De afeição, minha obra predileta, de releituras, a que recorro de tempos em tempos de forma prazerosa, cito Os Sertões de Euclides Pimenta da Cunha. Especialmente a parte em que salienta o Homem e a Luta, revelando a narrativa de uma tragédia brasileira no nascedouro da República: a guerra de Canudos, e a saga obsessiva do beato Antônio Conselheiro.
Significativo fragmento do livro Os Sertões foi lido no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 5 de fevereiro de 1898. A obra ainda estava em fase de composição. Nesta data Euclides foi eleito para integrar a Comissão de História e Estatística de São Paulo do referido Instituto. Em 1903 tornou-se membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, respeitável instituição dos tempos do Império. A 21 de setembro de 1903, Euclides foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, no local onde se faziam as reuniões na Rua da Quitanda, nº 47, escritório do advogado Rodrigo Octávio. A confraria passou a ter sede própria somente em 1905 no prédio chamado Silogeu Brasileiro, entre a Lapa e o Passeio Público. Em 1923, a Academia passou a ocupar o palácio doado pelo governo francês, então chamado de Pequeno Trianon, na av. Presidente Wilson.
Euclides esteve no front da “guerra do fim do mundo”, como assim redefiniu Vargas Llosa em romance com esse título em 1981. Na década de 40, o historiador baiano José Calasans foi em busca de sobreviventes de Canudos, mergulhou na oralidade dos ditos jagunços do santo Conselheiro, e extraiu novas assertivas históricas daquele ingente e lamentável conflito sertanejo, que ceifou cerca de 25 mil vidas. Mencionou a atuação de Euclides como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, em setembro de 1897, no epílogo da guerra. O pesquisador Calasans (1915-2001), com esses pós-escritos, trouxe a luz ao drama brasileiro, inserto na obra Cartografia de Canudos, 1997, editora da SCBa.
“Presenciou menos de três semanas de luta, ao todo 18 dias, de 16 de setembro até 3 de outubro. Retirou-se doente de Canudos em uma manhã esfumarada, dois dias antes do fim da guerra, por causa de acessos de febre, provocados pelas condições da guerra, com pilhas de mortos e feridos, falta de alimento e noites de sono interrompidas por tiroteios. Não assistiu ao massacre dos prisioneiros, à queda final de Canudos, à exumação do cadáver do Conselheiro e à descoberta de seus manuscritos, ou ao incêndio da cidade com tochas de querosene, ocorridos nos últimos dias. Tais cenas, ausentes de suas reportagens, foram relatadas com poucos detalhes no livro de 1902” (Calasans, 1969).
Assim se deu a narrativa centenária, que refez as andanças de Antônio Conselheiro, cearense de Quixeramobim. Reitero ser Os Sertões leitura indispensável para se compreender os rumos políticos e sociais nas primeiras luzes de nossa República com reflexos até os nossos dias.
O poeta modernista Carlos Drummond de Andrade, mineiro de Itabira, fez reparar a lacuna da insuficiência do hábito de ler no seio da sociedade, ao registrar que “a leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas, por incrível que pareça, a quase totalidade não sente esta sede”. Não há dúvida que estímulo ou ceticismo através do tempo sempre foi evidenciado por célebres autores. Do Velho Mundo, o filósofo e político britânico Francis Bacon referendou com notável síntese que “a leitura traz ao homem plenitude; o discurso, segurança, e a escrita, precisão”.
Em compromisso literário na capital potiguar, em Natal, há um ano, tive a subida honra de frequentar e expor um livro de minha autoria, a respeito da história e cultura nordestinas, no Instituto Câmara Cascudo, nome de um genial autor de uma das mais prolíficas obras que nos faz entender melhor o Brasil. Refiro-me ao Dicionário do folclore brasileiro, leitura essencial para jovens e adultos. Cascudo é autor de livros que tratam de assuntos inerentes à nossa realidade regional e brasileira, em que aborda literatura, cultura popular, história, política, religião, entre outros enfoques indispensáveis para nosso enriquecimento como indivíduo pensante.
A reparar que Cascudo era frequente amigo de outro genial descritor e ensaísta da nacionalidade brasileira, o sociólogo, historiador e antropologista Gilberto Freyre. Este autor de significativas obras do pensamento brasileiro, a mencionar Casa Grande & Senzala, Sobrados e Mocambos, entre variados tratados e escritos acadêmicos. Época de clássicos do pensamento social brasileiro, da linha de Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes. Exemplos de autores que, neste sentir complexo da nacionalidade brasileira, buscaram em suas teses a face original de nosso país.
Não podia deixar de esquecer a leitura do cordel, dos cantadores, aqui deixo umas rimas de um simples e genial poeta, um dos principais representantes da arte popular nordestina do século XX, Patativa do Assaré. De nome Antônio Gonçalves da Silva (1909–2002), que dizia não ter tido escola, mas ele próprio deixou-nos toda uma escola. Foi lançado pelo jornalista Austregésilo de Athayde, que décadas após se tornou emérito presidente da Academia Brasileira de Letras. Patativa num dos repentes engenhosos, fez reduzir em breve canto a sua essência poética, bem pura e enraizada no sertão. Ei-lo em versos bem-humorados.
Perdi meu ôio dereito,
Ficando mesmo imperfeito
Sem vê nem perto, nem longe,
Mas logo me conformei
Por saber que assim fiquei
Parecido com Camonge. (Camões)
Assim é crer que a leitura enobrece a alma, reedifica o amplo ensinamento e dá o tom a nossas vidas.
Fernando pessoa em trecho sensível aos leitores disse da leitura, como necessária embora encargo a ser vencido.
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
A reforçar o ato essencial dos humanos, neste pensar de Jorge Luís Borges, ao desabafar com este registro: “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria”.
Enfim…
Se mais alguém pervagou este trecho estimulador, a intenção foi exatamente esta. O mesmo ensaísta argentino citado, certa vez afirmou que “o livro é uma extensão da memória e da imaginação”. Definiu de um só ato verdadeiro.
O que me resta é entrever que este fragmento, rabiscado neste tempo laborioso para as nossas letras, consiga ao menos despertar o ânimo para chegar a um novo um leitor, ou para considerar a leitura mais como hábito a ser cultivado, pois vale a pena arranjar um tempo no cotidiano para mergulhar no universo de bons autores, notadamente os textos da literatura camoniana. E que, isso, torne-se um prazer a ser cultivado, sempre.
Luiz Serra – Professor e escritor