A MÁQUINA DO MEU TEMPO –

Fico imaginando a cena ocorrida em 15 de abril de 1964. Gail Wise, que acabara de se formar professora, tinha 22 anos, era uma típica garota americana de classe média vivenciando uma época espetacular. Ela chegou com os pais, a bordo de um Ford 1957 vermelho. Conversível.

O American Way of Life – um conceito que misturava a crença nos direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade criado em tempos de Guerra Fria para alfinetar comunistas – encantava o mundo, inclusive com seus carrões de sonho. O cinema hollywoodiano e a trilha sonora rock e pop que brotava em língua inglesa dos dois lados do Atlântico se encarregavam do resto.

Foi nesse cenário de prosperidade que ela entrou numa concessionária de Chicago para escolher seu primeiro carro. Queria comprar um conversível, pois adorava aquele dos pais. Mas não havia nenhum disponível no showroom da loja.

Ao saber do interesse da moça, o vendedor levou os três até o depósito nos fundos do prédio. Ali estava uma novidade que seria lançada oficialmente dois dias depois, na Feira Mundial de Nova York. O carro estava coberto e provocou um choque quando se revelou falsamente suave naquele azul claro Skylight Blue. Motor V8 de 4,7 litros e câmbio manual de três marchas, no assoalho. E, ainda por cima, conversível!

Diante da paixão à primeira vista, o vendedor quebrou o protocolo e topou vender na hora aquele carro de sonho, ainda secreto. Gail pagou 3,5 mil dólares pelo primeiro Mustang da história e saiu pelas ruas recebendo acenos até da polícia. A tevê já vinha veiculando a campanha de lançamento, mostrando apenas detalhes do carro. Diante de um de verdade as pessoas não sabiam o que dizer. Era a grande aposta da Ford para enfrentar a Chevrolet e seu Corvette, em linha desde 1953.

A partir dali a professorinha acostumou-se a “voar baixo” no seu pony car, aproveitando as rodovias novas e o pouco trânsito da época. E virou a queridinha da molecada enlouquecida pelo carro.

Três anos depois, eu era um menino que já adorava carros. Mas não tinha a menor ideia do que fosse um Mustang, pois o sertão nordestino daqueles tempos estava restrito a jipes, rurais, caminhonetes e caminhões. Onde fuscas e kombis ainda chegavam como novidades.

No dezembro daquele 1967, minha família mudou-se do interior para a capital e eu me deslumbrei com a primeira cidade grande por onde transitei. E com carros que eu nunca vira antes – dauphines, gordinis, DKWs, simcas, karmann-guias, interlagos, pumas, aero-willys, itamaratys, regentes, esplanadas, galaxies preparando a chegada dos “revolucionários” corcéis, opalas, variants, zés dos caixão, TLs, karmann-ghias TC, SP2, brasílias, passats, polaras, darts, le barons e chargers que encheriam as ruas nos anos seguintes.

Os alertas dos adultos sobre os perigos urbanos da capital tinham forte apelo para quem, como eu, vinha de uma cidadezinha onde conhecíamos todos pelos nomes, onde era permitido entrar e sair de praticamente todas as casas – éramos uma espécie de grande família, as crianças tinham de trânsito livre.

Mas o passar dos dias e o festival de novidades da cidade grande foram me incentivando a desbravar os novos ares, explorar a calçada até as esquinas próximas e outras cada vez mais adiante. E me fazendo ganhar confiança e novos amigos entre os meninos da vizinhança.

Certa feita, estava sentado na calçada, ganhando e perdendo bolas de gude, e vi passar lá adiante, num cruzamento, uma silhueta veloz, incomum, que não consegui registrar e muito menos encontrar no meu banco de memória. Fiquei confuso e curioso. Inquieto como quem pressente algo.

O quintal de terra da minha casa virara um campinho de futebol de poeira – o poeirão que levantávamos correndo atrás da bola infernizava as mulheres da casa –, onde nos fantasiávamos de craques. Um dos meninos da nova turma também gostava de carros. E nós costumávamos ficar, sem qualquer disputa, falando os nomes e os detalhes dos que passavam pela rua movimentada.

Um belo dia, veio o convite para irmos todos jogar bola na casa dele, ali perto. Saímos do colégio e seguimos animados pelas calçadas, até que o amigo abriu o portão alto, de madeira, da garagem. Fiquei paralisado!

Ali estava, em repouso angelical, a silhueta veloz que eu vira dias antes sem conseguir registrar nada. Um Mustang conversível, 1966, vermelho sangue – como o que Simonal cantaria tempos depois –, interior e capota (arriada) em couro branco. Apatetado, sequer consegui entender como um carro sem capota podia estar equipado com ar-condicionado.

Foi difícil me tirar da garagem para entrar na casa e chegar ao quintal, de campinho gramado – um luxo diante do meu, de terra. O amigo, simples apesar da fortuna familiar, me permitiu entrar no carro, fingir que estava dirigindo, apertar a buzina, imitar o ronco do motor num arranjo vocal formidável! E eu joguei uma das piores partidas das minhas peladas, pois só tinha cabeça para pensar naquele cavalinho da grade dianteira e em tudo mais que vinha a partir dali.

Muitos anos depois, eu já cinquentão, fui mais uma vez aos Estados Unidos e quis realizar dois sonhos. Primeiro, conhecer as Keys da Flórida, especialmente Key West. Segundo, cumprir a recomendação de todos os informes turísticos e de alguns amigos: fazer a viagem deslumbrante sobre o mar pilotando um conversível, cabelo ao vento.

Meu coração bateu mais rápido na hora de escolher o carro com o agente de viagens. Eu não tinha qualquer dúvida. Mas a regra das locadoras é clara, o cliente escolhe pela categoria do carro. E naquela havia também o Chevrolet Camaro, o Dodge Challenger e o Chrysler 200. Três grandes carros, mas nunca passaram velozes numa esquina da minha infância.

Desembarquei e fui direto ao balcão da locadora, buscar o sedã que utilizaria na primeira semana em Miami. Mas a minha cabeça já estava na viagem da semana seguinte.

Comecei a conversar com Mrs. Margareth, a atendente, uma senhora grandona que parecia personagem daqueles corais de música gospel, voz grave e pausada. Falei do Mustang e ela não abriu a guarda, recitou a regra da categoria de referência.

Eu falei do Brasil, que ela só conhecia de ouvir falar. Ela adorava férias na praia e chocolates suíços. Escancarei meu litoral nativo, na parte de cima do mapa. O filho estivera em Pipa e adorou. Pretendia voltar. Desafiei para que fosse junto. Em pouco tempo, estávamos falando de Martin Luther King, dos direitos civis, da música negra, dos carros americanos e suas novas tecnologias… E, last but not least, Beatles, linguagem universal!

Parti para o ataque levantando toda a poeira do campinho do meu quintal e descortinando a história do Mustang vermelho cor de sangue. Tentei repetir o arranjo vocal que fiz há tantos anos para imitar o motor. Ela abriu um largo sorriso. Cheguei na cara do gol, éramos o goleiro e eu. Chutei no cantinho, vi a bola rolando com chance de ir parar no fundo das redes…

– A que horas você vem retirar o carro no sábado? – a voz de trovão aveludado me fez jogador olhando para o juiz, antes de sair comemorando.

– Por volta das onze horas.

– Não posso garantir nada, mas venha direto para o meu guichê, não precisa entrar na fila. Estarei aqui das cinco da manhã até uma da tarde.

Nos despedimos cordialmente e tomei o elevador. Desci ao piso do parking da locadora e fui até o boxe 64, onde estaria o meu sedã simples. Descobri que Mrs. Margareth jogava muito melhor do que eu: estava à minha espera um Buick Lacrosse, pouquíssimo rodado e repleto dos exageros automobilísticos que os americanos adoram. Sim, ela fizera uma cortesia para que eu zanzasse a primeira semana naquele super sedã.

O sábado amanheceu ensolarado. Devolvi o Lacrosse sem querer me separar dele e cheguei ao balcão pontualmente às onze. Não vi Mrs. Margareth e entrei na fila. O atendente informou que haviam mudado a escala e ela trabalhara na madrugada. Fiquei com a sensação de quem faz gol contra, de que o Lacrosse fora um bônus para zerar o jogo.

O rapaz fez todos os procedimentos e disse que meu carro estava no boxe 50. Elevador, piso da locadora e segui para o estoque de carros. Eu me dei conta de que havia passado do local indicado e virei para trás. Só havia um carro na área. Separado de todos, preto, conversível. O meu Mustang, que sairia comigo por aí, sem lenço e sem documento pelos próximos dez dias.

Olhei para aquele cavalinho na grade dianteira imaginando tudo mais que vinha a partir dali. Fiquei alguns minutos reverenciando a lenda, vendo aquele filme da infância passando na minha cabeça, lembrando dos meus velhos camaradas – que eu levaria na lembrança naquela viagem.

Iniciei o ritual ao abrir a porta. Acionei a ignição, o ronco inconfundível, bancos e retrovisores ajustados, capota abaixada, o clique do engate do câmbio. E o sol da Flórida por testemunha.

O histórico Mustang de Gail quase foi parar num ferro-velho, no final dos anos 70. Já não funcionava mais. Foi salvo pelo maridão Tom Wise, que prometeu restaurar o carro quando se aposentasse. O trabalho impecável recolocou uma celebridade nas ruas, que passeia nos fins de semana e participa de eventos de automóveis clássicos. Com valor estimado em 350 mil dólares, não está à venda.

Em abril de 2014, o Ford Mustang completou cinquenta anos de história e a Chevrolet produziu um comercial comovente do seu Camaro dando os parabéns ao bravo concorrente e desejando mais disputa pela frente: “Feliz aniversário, Mustang. Por mais 50 anos de rivalidade. Seu amigo, Camaro”, dizia o cartão publicado mundo a fora, com a mensagem subliminar tipo concorrentes sim, inimigos não!

Em agosto de 2018, a Ford festejou dez milhões de unidades produzidas e lá estava a mesma Gail Wise com o primeiro Mustang comercializado. A roda da vida que não para de ir e vir, a velha magia que une carros, pessoas e estradas como rota sem fim. E assim será, como sempre foi. A mesma máquina do tempo que encheu minha cabeça de menino com o sonho de dirigir um Mustang conversível. Sem destino, sem pressa, sem hora marcada. Apenas pisando fundo, of course!

Pouco mais de duas horas de estrada, eu estava de frente para o mar em Islamorada, almoçando no Hungry Tarpon, assistindo ao espetáculo dos tarpões pulando da água para arrancar sardinhas das mãos dos turistas, sob assédio malandro de garças e pelicanos.

O celular tocou. Mrs. Margareth disse que não precisava eu ter me incomodado em deixar chocolates suíços para ela. Respondi que não precisava ela ter se incomodado em deixar um Lacrosse e um Mustang para um louco por carros.

– Enjoy the Keys, man!

– Thanks lady! Bye.

Enquanto aguardava o cafezinho final, fiquei pensando a respeito das relações improváveis que conseguimos estabelecer nesse vaivém pelo meio do mundo. Aquela senhora foi clara a respeito dos termos do contrato, afetuosa no decorrer da nossa conversa e finalmente generosa no empenho pessoal para que o homem feito realizasse o sonho do menino. Com o bônus do Lacrosse. Algo que nem uma fábrica de chocolates inteira conseguiria recompensar.

Acionei a ignição e ouvi de novo o ronco quase música do motor. Abaixei a capota e fui saindo devagar, querendo aproveitar cada lufada de ar que batia no meu rosto e esvoaçava o cabelo. Mais duas horas, num ritmo entre sentir aquele carro e apreciar a paisagem, e eu estava chegando ao píer, a tempo de tomar umas e participar da cerimônia do pôr do sol famoso.

Bastaram mais algumas tantas para descobrir que aquele povo que saiu de Woodstock, e não chegou em casa até hoje, parou em Key West. Com boas razões.

Entrei no hotel tarde da noite e nada poderia ser melhor do que aqueles detalhes bem americanos – quarto, banheiro, ducha e cama imensos! Antes de deitar, uma puxadinha na cortina para olhar o Mustang lá embaixo. Sim, nós dois estávamos ali.

 

Heraldo PalmeiraProdutor Cultural

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