A MIGRAÇÃO JUDAICA EM BELMONTE E SUAS INFLUÊNCIAS CULTURAIS –

Os ciclos civilizacionais renovam-se, mantendo a historiografia mundial os registros que demonstram constituírem os acontecimentos verdadeiros marcadores de contemporaneidade.

Fatos milenares, seculares, apontam que os homens, através dos tempos, suplantam os seus desafios vivenciais, buscando, no poder hegemônico, a razão maior de suas existências.

Poder e religiosidade são entes gemelares, a orbitar o universo dos homens e o da divindade. A glória é que cada segmento tenha o seu deus próprio, exclusivo, a feitio de um conglomerado divinal. O Olimpo grego, mitológico, fantasmagórico na interação da figura humana com a da divindade, gerou profundas reflexões no período greco-romano, alcançando os tempos atuais, guardados os avanços tecnológicos das comunicações. Deuses e semi-deuses olímpicos!

Assim, de forma diacrônica, voltamos à migração judaica em Belmonte, incrustada em Portugal, terra natal de Pedro Álvares Cabral e cenário da presença helenística e de atuante romanização, posterior.

Aliás, nos moldes vassaláticos, Pedro Álvares Cabral, Fidalgo do Conselho do Rei e Cavaleiro da Ordem de Cristo, segundo consta, foi batizado como Pedro Álvares de Gouveia, passando a usar o sobrenome Cabral, somente três anos após o descobrimento do Brasil. A mãe dele se chamava Isabel Gouveia de Queiroz, com vínculo judaico em sua ancestralidade.

A propósito, Cabral era genro do rico comerciante asturiano, Fernando de Noronha, conhecido também como Fernão de Noronha (Fernan de Loronha), cristão-novo, preposto do celebérrimo banqueiro judeu Jakob Fugger, e que recebeu da Corte a primeira capitania insular da colônia brasileira, a ilha de Fernando de Noronha, antigamente denominada ilha de São João da Quaresma, com direitos à exploração de pau- brasil.

Fernando de Noronha e seu genro Cabral, de Belmonte, representavam uma verdadeira sucursal do poderio financeiro de Jakob Fugger, estabelecendo sua malha de importância e interesses na expansão ultramarina da Península Ibérica, o primeiro ostensivamente e o segundo estruturado na órbita familiar.

O germânico Fugger, via seu representante Fernando de Noronha, foi o primeiro não-português a investir no Brasil, ainda em 1503.

Nos primórdios do século XVI, após o descobrimento do Brasil, duas expedições exploradoras, uma de 1501 e outra de 1503, capitaneadas pelos judeus conversos Gaspar de Lemos (Gaspar da Gama) e Gonçalo Coelho, tiveram a interferência de Noronha junto ao Rei de Portugal (D. Manuel), estabelecendo-se contratos exploratórios da Terra de Santa Cruz, que chegou a ser conhecida como Terra de Gonçalo Coelho.

A importância de Belmonte e a judiaria atingiram extraordinário grau de importância nas atividades comerciais ultramarinas. Judeus como Diogo Álvares Correa (Caramuru), João Ramalho, náufragos na costa brasileira, constituíram pontos de apoio comercial madeireiro, ensejando orientações a todos, inclusive a Martim Afonso de Souza, judeu também, donatário de capitania hereditária.

A força judaica permitiu a criação da primeira sinagoga das Américas, em Recife, a Kahar Zur Israel, que após a retirada batava da colônia foi esta falange de judeus para os Estados Unidos, criando a Nova Amsterdã, hoje New York.

Para que se reavive a importância de Jakob Fugger, dito o Rico, o maior banqueiro de todos os tempos no mundo, ressalte-se que ele tinha como seu representante em Portugal o sogro do belmontense Pedro Álvares Cabral, o cristão-novo Fernando de Noronha.

Traz-se à colação notícia alusiva ao poder econômico inconteste de Fugger:

“Um negócio escandaloso”

“Tudo teria começado em 1513/14 com a ambição da dinastia Hohenzollern, da Prússia, em querer ampliar o controle sobre os arcebispados alemães. Aproveitando-se da vacância de dois importantíssimos postos, Alberto de Brandenburgo, que apesar de ter apenas 23 anos já era arcebispo de Madenburgo, reivindicou junto ao papado a acumulação das funções das dioceses de Mayence e Halberstadt. Pretensão tida como ilegal, mas contornável se amparada com dinheiro ofertado a Roma. A confirmação dada pelo papa Leão X (da família dos banqueiros Médici, de Florença), em agosto de 1514, custaria a Alberto de Brandenburgo a soma de 14 mil ducados, acompanhada de uma “concessão voluntária” de mais 10 mil ducados.

A intermediação do negócio entre o arcebispo e o papa foi reservada ao grande banqueiro Jacob Fugger, o rico († 1525), que naquela época praticamente detinha o monopólio das relações financeiras de Roma com os estados alemães (conforme A. Schulte, Die Fugger in Rom, tomo I, 1904). Foi para pagar os adiantamentos de Fugger que o papa Leão X concedeu a Alberto de Brandenburgo a permissão de vender indulgências ao preço entre oito e nove ducados cada uma, nas dioceses do seu arcebispado.

A concessão, conforme determinou a bula papal de 31 de março de 1515, se extenderia por oito anos, sendo que o arcebispo e o pontífice dividiriam entre si os proventos alcançados repassando-os ao credor Fugger. Sendo que Leão X, com o que lhe cabia, pensava em acelerar as obras do Vaticano, então em construção. Todavia, Maximiliano, o imperador do Sacro Império Romano Germano, desde que fora informado do acordo, exigiu sua participação, reclamando para si, durante os três primeiros anos, 1/3 do que fosse recolhido entre os crentes temerosos das penas eternas.”

Crê-se que Belmonte tenha sido o polo mais forte da presença judaica em Portugal, mantendo-se através do tempo a singularidade da tradição hebraica, da cultura, como demonstram e registram os historiadores, constituindo o Museu Judaico de Belmonte um verdadeiro repositório da memória do povo de Israel.

Pedro Álvares Cabral, homem de Belmonte, tido como cristão-novo, descobridor do Brasil, em 22 de abril de 1500, quando fazia acompanhar-se de inúmeros judeus, tais como Gaspar da Gama, que falava várias línguas, entre elas o hebraico, o árabe e o caldeu; Mestre João (João Faras), médico particular da Coroa e astrônomo espanhol, nascido na Covilhã; além de clérigos.

Mais, ainda, a efetiva história dos judeus em Portugal teve início com a formação do Condado Portucalense até o processo da Reconquista Cristã, após oito séculos de domínio muçulmano, quando os mouros venceram os visigodos na Batalha de Guadalete (d.C.711).

Durante cinco séculos o Judaísmo floresceu na Espanha, mais tarde obstado pela Inquisição.

A Península Ibérica (Sefarad) ganhou novos contornos sócio-políticos sob o mando de D. Afonso Henriques, o primeiro Rei de Portugal (O Conquistador), ex-Conde de Portucale, partícipe das Cruzadas, quando os judeus ibéricos passaram a ser denominados de sefarditas. A Reconquista encontrou no mundo judaico um apoio inconteste, tornando-se D. Iachia ibn Yaisch, rabi-mor, uma figura da maior importância da Corte portuguesa.

A anterioridade migratória tem origem na diáspora judaica, consubstanciada nas diversas fugas dos judeus mundo afora, na confrontação com outros povos na busca do poder hegemônico civilizatório e na cristalização da busca da Terra de Canaã. Sem dúvida, longa e sofrida história do povo judeu em suas diásporas!

O judeu é um povo peregrino.

Até então, os monarcas portugueses propiciavam liberdade do culto judaico e as judiarias constituíam uma realidade social. Em toda a região, especialmente, em Belmonte, em razão de que os imperadores tinham noção exata do poder e prestígio dos judeus na condução do projeto expansionista ultramarino, o judaísmo se expandiu. Em 1516, o Rei D. Manuel proporcionou meios para que os cristãos-novos desenvolvessem a indústria canavieira no Brasil, despontando a figura judaizante do dono do Engenho Santiago, do judeu Diogo Fernandes.

O rei D. Manuel e seu tio antecessor, D. João II, tiveram o descortino de aproveitar a capacidade e os conhecimentos dos fugitivos judeus da Espanha, reunindo homens eruditos, como, por exemplo, Abrão Zacuto, nomeado astrólogo e cronista da Corte.Abraão Zacuto foi o autor de um novo astrolábio, que ensinou aos navegantes portugueses utilizar tábuas astronômicas na orientação das caravelas portuguesas em alto-mar, tendo publicado um tratado notável de astronomia em hebraico e em latim, impresso na tipografia de Leiria de Abraão de Ortas, em 1496, como Almanach Perpetuum.

A erudição dos judeus ensejou o esplendor da escola de Sagres, e permitiu que o belmontense Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama atingissem os feitos heroicos do descobrimento do Brasil e da chegada às Índias pelo Ocidente.

Na frota cabralina esteve presente o judeu Mestre João (José Vizinho), cirurgião de D. Manuel, e cosmógrafo, físico, matemático, astrólogo, nascido na Covilhã.

A Igreja preocupada com o avanço do mundo judaico impôs a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, permitindo que os sefarditas levassem todos os seus bens, menos ouro, prata, joias e moedas… Este ato apenas fez crescer o contingente dos participantes da judiaria lusitana. Foram cerca de 100 mil sefarditas para Portugal.

Dada à proximidade geográfica, Portugal recebeu os exilados, impondo-lhes o pagamento de oito cruzados por migrante, além da obrigatoriedade de procurarem novos destinos no prazo de oito meses, após o que seriam vendidos como escravos. Nova artimanha imperial foi engendrada por D. Manuel I, estendendo o prazo por mais um ano, e preocupado com a perda econômica desta saída, criou obstáculos de emigração, tendo determinado o batismo de todas as crianças com menos de 14 anos, na fé cristã e, consequentemente seus pais, agora cristão-novos, ditos marranos, filhos dos sefarditas.

Em razão do Édito de Expulsão, de 1496, a sinagoga de Belmonte foi transformada na Igreja do Espírito Santo.

Sempre a Igreja, a ferro e fogo, a impor seus desígnios de poder junto aos monarcas, razão pela qual criou a famigerada Inquisição em Portugal, em 16 de julho de 1524, verdadeira sucursal da hispânica, sob o comando do temível dominicano Tomás de Torquemada, Inquisidor-Geral, que lançou milhares de judeus às fogueiras medievais, em nome do Cristo! Impõe-se registrar que, após o primeiro auto de fé em Lisboa com execuções em diversas cidades, o Papa suspendeu a Inquisição em Portugal, mas aquiesceu, mais tarde com o seu retorno, e atendendo ao monarca D. João III, expediu bula suplementar, em 16.7.1547.

Em resumo, os interesses da Igreja e os monárquicos eram entrelaçados, cujo exemplo maior foi a implantação do Padroado.

A Inquisição em Portugal durou até 1821, quando foi extinta pelas Cortes Constituintes, minimizando-se a perseguição clerical.

Há que se louvar, sempre, o credo judaico em sua luta titânica na preservação de seu ideário, mormente quando os conversos, marranos, descendentes dos sefarditas, fugindo das perseguições da Santa Inquisição (sic), clandestinamente, continuaram a professar o criptojudaismo.

Vislumbra-se que o criptojudaismo foi a forma velada que proporcionou a manutenção da língua, dos costumes, da alimentação, da religiosidade, das tradições hebraicas, mantendo-os preservados socialmente, como se estivessem sob uma redoma protetora, o que aconteceu em Belmonte e circunvizinhanças.

Veja-se o que aconteceu com o latim, como língua dominante de um Império!

O latim, dita Flor do Lácio, transportou os valores do Império Romano mundo a fora, gerou as línguas românicas logo adiante elencadas, no continente europeu, fruto da miscigenação e embates entre dominantes e dominados, caldeou hábitos, costumes, formas de expressão, valores étnicos e novos gentios.

O latim vulgar teve seu declínio por volta de 1300 como língua, ao contrário do árabe, do hebraico e do aramaico, em uso até os dias atuais, ditas línguas de raiz semítica.

Há que se reflexionar do porquê o hebraico resistiu às intempéries civilizatórias desde os primórdios da eliminação do Templo de Jerusalém por Nabucodonosor, por volta do ano 70, antes de Cristo.

Línguas românicas

•  aragonês

•  aromeno/arrumânico

•  asturiano

•  italiano

•  ladino/judeu-espanhol

•  estremenho

•  franco-provençal

•  francês

•  mirandês

•  moldavo

•  napolitano

•  provençal

•  romeno

•  sardo

•  siciliano

•  catalão

•  corso/córsico

•  emiliano-romanholo

•  espanhol/castelhano

•  italiano

•  megleno-romeno

•  friulano/friuliano

•  galego

•  gallo

•  istro-romeno

•  normando

•  occitano

•  piemontês

•  português

•  valenciano

•  valão

•  vêneto

Diz-se que o ladino, que se assemelha ao espanhol, era usada pelos judeus na Península Ibérica, que constituía uma reunião de palavras de origem hebraica com termos castelhanos, portugueses, árabes e catalães. Era uma adequação ao mundo dos negócios.

Por sua vez, o occitano era concorrente ao latim como língua científica, utilizada pelos trovadores e tinha a característica de língua franca nas trocas comerciais.

Deste conglomerado linguístico, duas raízes permaneceram intactas: o árabe e o hebraico, ambas semíticas como o aramaico (Jesus falava aramaico) e o siríaco.

Crê-se que a fé professada por ambas seja o sustentáculo da coexistência até os tempos atuais, razão pela qual a Igreja tenha promovido luta insana pela primazia de evangelização catequética. Recorde-se a figura do notável orador sacro, Padre Antônio Vieira, defensor dos indígenas brasileiros, da erradicação da escravização negra, do retorno dos judeus expulsos, motivo pelo qual foi preso pela Inquisição, durante dois anos.

A forma do criptojudaismo ensejou limites preservacionistas da religião, dos costumes, da cultura, até mesmo de sobrevivência física.

Belmonte é uma ponta deste gigantesco iceberg cultural linguístico.

O Museu Judaico de Belmonte é uma chama viva de resgate desta odisseia, a mostrar as entranhas da tortura eclesiástica, revivida pelos nazistas insanos, que geraram o Holocausto. Belmonte é o único núcleo intacto de marranos no mundo, constituindo a sinagoga de Tomar, o mais antigo templo judaico em Portugal.

Como um farol a iluminar os incautos, encontra-se a primeira sinagoga em Belmonte, datada de 1297, onde está afixado em seu vestíbulo, o dizer:

ADONAI ESTÁ NO TEMPLO SAGRADO. NA SUA PRESENÇA TODA A TERRA PERMANECE EM SILÊNCIO.

 

 

 

 

José Carlos Gentili – Historiador

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores

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