A NOVA INVASÃO DOS BÁRBAROS –
No decurso do século XVIII, dois acontecimentos marcaram para sempre a história da democracia. O primeiro foi a independência dos Estados Unidos, não pela independência em si, mas pelo ideário que a norteou. Exemplo é o preâmbulo da Constituição norte-americana, datada de 1787, que diz que seu objetivo é “formar uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade interna”. Isso já é suficiente para comprovar sua importância. Entretanto, há outro aspecto: ela dá relevância ao poder legislativo, já no seu artigo primeiro.
O segundo fato foi a Revolução Francesa, de 1789, no que pese os seus aspectos de barbárie, notadamente os guilhotinamentos em massa, que mataram, inclusive, alguns revolucionários. Os objetivos iniciais da revolta eram acabar com os privilégios; da aristocracia, dos senhores feudais e da alta cúpula religiosa. Todavia houve um desvirtuamento, levado a efeito por grupos radicais e por uma intensa luta intramuros pelo poder. Terminou prevalecendo o legado de seu lema: “liberdade, igualdade e fraternidade”, em uma sociedade de cidadãos livres. Há uma infinidade de estudos e livros sobre a Revolução Francesa, todos terminando por nos levar à situação de respeito às regras da boa política, na terra das luzes.
Já nos Estados Unidos a coisa não foi bem assim. Embora a 14ª emenda (1868) da Constituição afirmasse que todos os cidadãos eram iguais perante a lei, e a 15ª (1870), que o direito de voto “não poderá ser negado […] por motivo de raça, cor ou de prévio estado de servidão”, para que esses direitos fossem exercidos, foi preciso uma guerra, a Guerra da Secessão, de 1861-1865, e muitas outras lutas e mortes, inclusive a de Martin Luther King. O fato é que a sociedade americana é complexa e de difícil compreensão.
Dentre muitos, dois grandes pensadores se debruçaram sobre a formação e funcionamento daquele que hoje é o mais importante país do mundo, quer pelas suas forças econômica e bélica ou (meio que incompreensível) por ser o esteio da democracia. O primeiro foi o francês Alexis de Tocqueville, em seu magnifico “A Democracia Americana”, de 1832. O segundo foi o alemão Max Weber, em seu profundo estudo “A ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, de 1904/1920. Entre outros aspectos, ambas as obras pesquisam o sistema produtivo. O primeiro, baseado na escravidão e sua resistência; o segundo, na força operária e suas organizações sindicais. Em ambos há, também, uma abordagem subliminar, se não direta, sobre as instituições política. Entretanto, o que esses pensadores europeus visaram com seus estudos foi encontrar a base da sociedade norte-americana, as pessoas. E encontraram a persistência, a tenacidade e o destemor, não importando se o ponto de partida, as ideias que tenham dado origem às ações, sejam certas ou erradas.
Exemplos há muitos. Abolida a escravidão, permaneceu um sistema de segregação contra os negros. Os linchamentos de negros aconteceram até meados do século passado. O remédio contra greves era a polícia, o que aconteceu com a greve do dia 1º de maio de 1886 em Chicago, que terminou com inúmeras mortes (dos trabalhadores, é claro). Não foi senão um estado de violência mental que gerou o assassinato, de quatro presidentes – Abraham Lincoln (1865), James Garfield (1881), William McKinley (1901) e John Kennedy (1963). Em 1981, Ronald Reagan teve o pulmão perfurado por uma bala, mas sobreviveu.
Agora ocorre um fato mais tresloucado: o próprio presidente incitando o povo a invadir o Capitólio, o prédio do parlamento, numa nova invasão bárbara. Nem um pensamento louco demais imaginaria isso. Mas Donald Trump pensou.
O impressionante é que os Estados Unidos, durante todo o tempo de sua existência, sempre foram considerados o sustentáculo da democracia no mundo. Enfrentou a Alemanha Nazista e foi peça fundamental para a vitória dos aliados; financiou e participou da recuperação do Japão e das nações europeias afetadas pela guerra; enfrentou, também, a URSS durante a guerra fria; hoje se contrapõe à China comunista.
Tribuna do Norte. Natal, 20 jan. 2021
Tomislav R. Femenick – Jornalista, historiador