A PASSAGEM DA NOITE –
“Siga o rio. O rio conhece o caminho”. É o estribilho de uma antiga canção do faroeste americano. O leito caudaloso da memória me conduz às vozes que vêm de longe. Na dor acumulada e na fadiga rotineira, ensaio os meus passos no caminho das minhas perdas. Revejo os meus personagens. Escuto o vento nas folhas e o piano da chuva no telhado como se não tivesse ainda baixado a cortina da minha infância em Macaíba. Os passos enérgicos do meu pai e a fragrância suave de minha mãe me parecem tão nítidos, no corredor da memória, como se permanecesse ainda aberta a última porta daquele tempo. Diante do que possa sugerir esquisitice essa ressurreição de ambiente, impetro uma medida cautelar possessória, uma manutenção de posse do espaço perdido tal qual um desesperado náufrago da complexa realidade de hoje.
Nada disso significa nostalgia piegas. Apenas, me interessa o imponderável e o mistério dos desencontros humanos. Enquanto houver silêncio, solidão, tragédia, medos secretos, jamais deixarei de perseguir os significados. Além da visão, da memória, dos sonhos, tenho os meus pressentimentos. Às vezes, no recolhimento, surgem-me os sons longínquos da antiga amplificadora municipal, “a voz de Macaíba e o seu musical variado” dentro da noite calma e estrelada daquele cenário mítico. A mente se povoa de mortos e de vivos que vagam e que passam. O velho campo de futebol, entre as ruas 30 de Março e Campo Santo, me restitui os ídolos desaparecidos. Craques comuns da vida pobre da cidade, mas que se igualavam para mim aos astros do Maracanã dos idos de Zizinho, Danilo e Ademir.
As águas do rio da reminiscência atingem novas margens e aprofundam o porão da memória. O Cine Teatro Independência dos filmes do Gordo e o Magro, dos Três Patetas, de Chaplin, de Abbott e Costello além dos faroestes que não se repetem mais; a praça Antônio de Melo Siqueira dos primeiros alumbramentos, dos passeios, do banco do namoro, do coreto, tudo como qualquer lembrança de homem comum do interior; a rua do Vintém, do Cajueiro, as Cinco Bocas, a praça da Matriz, o cais de pedra do rio Jundiaí, as jabuticabeiras da Lagoa das Pedras, o Pernambuquinho; o Gango (o baixo meretrício), de todas proibições à hora do crepúsculo, os antigos ônibus da linha Macaíba/Natal que me consumiam diariamente a farda estudantil, enfim, o universo humano das figuras populares, coração e alma de Macaíba que não pára nunca. Na noite de minha vida ainda assisto, com nitidez, à passagem do meu rio
porque eu continuo a ter os meus personagens.
Mas, o patrimônio existencial da terceira idade, onde a memória olfativa, a auditiva e, principalmente, a visual, procuram restituir-me o universo perdido das fases inaugurais da vida. Aquela lua cheia, por exemplo, vista do cais do rio Jundiaí em Macaíba, como se estivesse pendurada por fios invisíveis, atrás dos coqueiros e eucaliptos, infundia-me na adolescência negro mistério do tempo da colonização dos escravos, índios e colonos, de escuridão e medo, como se as fases da lua chegassem naquele tempo por édito imperial. Como me perco na
contemplação do Solar do Ferreiro Torto e os seus sortilégios de poder, carne, cobiça e paixão. E a descortinação surpreendente do Solar dos Guarapes.
Quantas perguntas insaciadas não existem sobre o que ocorreu ali? Os seus fantasmas que subiam e desciam a colina sob a batuta do senhor de engenho numa cosmovisão ora polêmica, ora lírica, dentro do abismo da memória?
Valério Mesquita – Escritor, [email protected]