A PEÇA E SEUS ATOS –
Lembro-me de uma certa conversa com um amigo, em que ele me contava algumas providências que sempre toma quando viaja. Coisa corriqueiras, como arrumar a mala – homem leva somente uma mala, se fosse uma mulher a viajar seriam, além das malas, maletas, sacolas, bolsas e penduricalhos -; uma “ruma” de bagagem.
O homem confirma reservas, confere meias e cuecas, põe duas mudas de roupas e, a mais importante de todas as providências, para ele: apagar as mensagens do Facebook e WhatsApp. Desaparecer, literalmente, com todas as provas irrefutáveis oriundas das redes sociais – essa é a maior preocupação dele nos dias que antecedem qualquer viagem.
Ele justificou que tal providência se dá pela possibilidade de um encontro inesperado com a temida ceifadeira, a megera Dama da Noite – eu tive dúvidas sobre o termo “inesperado” nesse contexto, pois, se há a preocupação em deletar todas as provas do crime, desfazer-se de tudo que possa vir a revelar suas infidelidades e desejos inconfessáveis, certamente, seria um encontra esperado.
Mesmo que a dita Dama da Noite seja bissexual e imprevisível, ela não enjeita nada, traça tudo que lhe passar pela frente: de pobre a rico, de magro a gordo, de novo a velho, de ateu a protestante, ela não está nem aí para classe social, gênero ou credo.
Como sabemos que ela não faz qualquer distinção de nada, é por isso que, sãmente, tendemos a exorcizá-la de nossos pensamentos e, principalmente, de nossas vidas. Ao contrário do nosso amigo em discussão; nessas situações para ele, ela era apenas uma possível companheira de viagem.
– Pois é! – dizia ele – Vai que eu encontre com a sedutora do além, me desgrace com ela e nunca mais volte.
Ainda tentei buscar lógica em seu pensamento instruído e precavido. Ora, se ele passasse dessa para melhor, de que importaria a essa altura do campeonato, as descobertas das paqueras virtuais, vídeos caseiros de casos cibernéticos e mensagens proibidas para menores?
Não resisti a curiosidade e lhe perguntei qual o problema que haveria, se ele não estando aqui pelas redondezas e sem precisar se explicar, fossem descobertas suas aventuras secretas. Ele me respondeu, enfático, próprio de quem se preocupa com a reputação ilibada, talhada anos a fio, sobre o molde de um homem acima de qualquer suspeita, respeitado e admirado:
– Exatamente por isso que devo ser cauteloso e apagar qualquer vestígio de mácula. Já imaginou um homem como eu deixar um legado de bandidagem! E, ainda por cima, ser o provocador oficial da desarmonia entre minhas garotas. Logo elas que me fazem tão feliz!
Agora engendrou o meu pensar. Desatinei em devaneios, imaginando todas as beldades enroscadas entre cabelos, unhadas e mordidas. Ainda mais diante da revelação seguinte do próprio viajante das aventuras amorosas:
– Quando começo um romance, o primeiro pedido que eu faço é: se eu morrer antes de você, prometa-me que irá ao meu velório… Nunca nenhuma delas me negou o pedido.
Danou-se! Não tive como debrear os pensamentos sobre os segredos contidos nas madrugadas, nos amores tórridos das paixões avassaladoras. Dos amores correspondidos, das entregas sem reservas. Dos corpos desprendidos das amarras dos preconceitos e de todo amor e paixão envolvidos nos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º atos… Ufa! Se os números são infinitos e meu nobre colega disse que já perdeu as contas dos romances que teve, e que ainda pretende ter, melhor parar por aqui.
Seria a quimera da felicidade o emendar dos atos e cenas da peça da vida que compomos? Se um ato é composto de várias cenas, e as cenas têm início e fim, poderíamos dizer que cada ato é imprescindível para a evolução espírito-carnal de cada protagonista, antagonista, coadjuvante ou mesmo o figurante?
Se pensarmos os amores e paixões como representação do belo, visto pelos olhos da alma e sentido pela beleza dos corpos, os atos serão harmoniosos, emocionantes e inesquecíveis e, “consagradamente”, imortalizados.
Um gentleman. Definitivamente, meu nobre colega é um cavalheiro. Homem gentil e amável. Amante generoso e zeloso, que não nega amor às suas paixões. Ávido e perspicaz, trata com zelo e cuidado seus afetos.
Bom, não sei de que valerão minhas observações em negritar como nobres as suas atitudes, aniquilando, impiedosamente, todos os vestígios que, porventura, viessem causar descontentamento ou decepção entre as divas de sua peça, elevando-as, todas sem exceção, ao posto de atrizes principais.
Por sorte dele, o último ato se dará sem sua interferência. Eu que não perco, por nada neste mundo, prometi assistir ao fechamento do espetáculo na primeira fila e, de quebra, fazer a crônica.
Flávia Arruda – Pedagoga e escritora