A PÓS-LEITURA –

É costume meu, antes de viajar para o exterior, ler um livro cuja história/estória esteja ambientada na cidade/país para onde eu vou. E, em casos mais extremos, os próprios livros foram os móveis que me levaram a viajar ou mesmo passar uma temporada no ambiente lido. “Amor a Roma” (1982), do nosso Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), foi um deles; “Paris é uma festa” (“A Moveable Feast”, 1964), de Ernest Hemingway (1899-1961), outro. Os respectivos títulos já informam sobre quais urbes estamos tratando. É delicioso, asseguro.

Em caso de estadas mais longas, a exemplo de quando fiz meu doutorado em Londres, os livros, seus autores e suas personagens foram os meus companheiros. Já recordei, em outras ocasiões, a epifania que tive nos jardins de Russell Square, onde fica a Biblioteca do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados da Universidade de Londres, numa tarde de verão: a cena do livro que lia, da minha amiga Agatha Christie (1890-1976), se passava ali, onde eu estava. E, daí em diante, eu passei a misturar tudo: Londres, literatura e direito. Sempre que podia, ia ler a Rainha do Crime ou as aventuras do detetive Sherlock Holmes nos locais onde as cenas se passavam. Recordo-me de haver lido “Testemunha de Acusação”, a peça de Christie, nos dias em que visitamos, como programação da minha universidade, a Old Bailey, sede das cortes criminais de Londres, onde a trama se passa. Foi tudo de bom. E quando esse tipo de leitura “presencial” era impossível, como em “Morte na Mesopotâmia” ou “Morte no Nilo”, eu me enfurnava no Museu Britânico, para ler os livros ali, junto aos despojos daquelas civilizações. Divertidíssimo. Sempre digo que, à época, a literatura me salvou. Tornou a vida menos difícil, certamente.

Mas, desta feita, na última Páscoa, quando estivemos em Londres e Paris, não houve tempo para essas “leituras”. Nem antes e muito menos, com o pequeno João demandando nossa atenção, nos dias corridos por lá. Turista besta sofre…

Decidi, então, inverter a ordem dos fatores e fazer uma “pós-leitura”. Isto é: ler, já de volta ao querido Brasil, um romance ambientado nas metrópoles onde estivemos. E a minha primeira escolha, começando por Paris, foi um Maigret, do meu amigo Georges Simenon (1903-1989), especificamente “Maigret e o homem do banco”, numa edição da Nova Fronteira/L&PM de 2004.

Gostosamente, descobri que vários sítios onde havíamos estado ou passado eram referidos no livro como parte do seu “cenário” parisiense. Começando, claro, pelo complexo do Palais de Justice, notadamente o número 36 do Quai des Orfèvres, onde está o quartel-general da Polícia Judiciária do inspetor Maigret, “la mansion”, como chama a personagem-título. No miolo de Paris, na Île de la Cité, sempre que posso passo pelo Palais de Justice para sacar umas fotos “legais”. Boa parte da trama do livro se dá na zona dos grandes bulevares na Rive Droite. O crime acontece em um beco do Boulevard Saint-Martin. O morto frequentava um cinema no Boulevard de Bonne-Nouvelle. Personagens almoçam em um restaurante do Boulevard de Sébastopol. Coincidentemente, nesta viagem, perambulei bastante pelo burburinho dos grandes bulevares, sobretudo pelos Boulevards Haussmann e Montmartre, quando a mãe de João decidia dar suas xeretadas nos grands magasins do pedaço – leia-se Printemps e Galeries Lafayette –, me deixando tomando conta do pequeno. Não tenho do que reclamar. No mais, já para as bandas da Rive Gauche, uma das personagens trabalha “numa grande livraria do Boulevard Saint-Michel”. Será que era numa das livrarias que ainda “sobrevivem” por lá? Será que é a mesma onde tinha eu acabado de comprar, de vera, uma penca de livres d’occasion? E fui lendo o romance sonhando acordado…

Gostei tanto da minha experiência de pós-leitura que já passei para um segundo Simenon: “Maigret e o negociante de vinhos”, numa publicação L&PM de 2009. Aqui se investiga o assassinato de “uma figura importante, um atacadista de vinhos”, quando ele saía de sua visita à amante em uma luxuosa casa de recursos nas imediações do Parc Monceau, área aristocrática de Paris. O rico homem dos vinhos morava em plena Place des Voges. Oficialmente, tinha uma belíssima e misteriosa esposa. Tudo très chic, bien sûr.

Bom, eu já tomei muito vinho na vida, sobretudo quando jovem. Mas eles eram de qualidade mediana ou mesmo duvidosa. Quanto aos ambientes que já frequentei, melhor não entrar em detalhes. Certamente não frequento, nem nunca frequentei, com ou sem taças na mão, as altas rodas de Paris. Mas não custa nada sonhar acordado. Mesmo que em literatura.

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

As opiniões contidas nos artigos/crônicas são de responsabilidade dos colaboradores
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