Marcelo Alves Dias de Souza
Nas semanas passada e retrasada, o Supremo Tribunal Federal nos presenteou com duas decisões importantíssimas, com reflexo direto na persecução de crimes no Brasil: uma delas confirmando a permissão à Receita Federal do Brasil, com base na Lei Complementar 105/2001, sem necessidade de autorização judicial, de acessar dados bancários dos contribuintes para fins, lícitos e bastante republicanos, de averiguação de irregularidades/ilegalidades tributárias; a outra, na seara do processo e do direito penal especificamente, possibilitando, por entender não existir ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência, o início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau.
Vou dar aqui minha opinião sobre essas decisões tão badaladas, começando, hoje, pela que trata da permissão à Receita Federal de acessar dados bancários dos contribuintes, com base na Lei Complementar 105/2001, sem necessidade de autorização judicial, decisão essa que foi proferida, conjuntamente, no Recurso Extraordinário (RE) 601314 e nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 2386, 2397, 2390 e 2859.
Antes de mais nada, para se ter uma ideia da relevância da coisa, essa decisão sobre a constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001 vem resolver, de uma vez por todas, uma questão que vinha preocupando, dada a existência de posições divergentes, a muitos que militam com o direito criminal na Justiça Federal.
Eu mesmo, como Procurador Regional da República, funcionei em vários casos versando sobre crimes contra a ordem tributária, muitos em sede de habeas corpus, atacando procedimentos administrativos tributários realizados pela Receita Federal com base na Lei Complementar 105/2001, em que teve o órgão fazendário acesso direto, sem necessidade de autorização judicial, aos dados bancários do contribuinte para fins de fiscalização, dados esses que serviram de base para a ação penal. O que vocês talvez são saibam é que a Lei Complementar 105/2001, por vários anos reputada constitucional pelos tribunais do país, foi, em fins de 2010, surpreendentemente, declarada inconstitucional pelo STF em um caso isolado, o recurso extraordinário RE 389808, por votação apertada de 5 x 4 (quando, um mês antes, nesse mesmo RE, uma cautelar havia sido negada por 6 x 4). Essa decisão isolada do STF, se reconhecida nela efeitos retroativos, como queriam alguns (sobretudo os advogados dos investigados/réus), atingiria fatos e atos jurídicos já realizados sob a égide da anterior orientação legal/jurisprudencial, que era pela constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001. Especificamente, depois dessa decisão isolada do STF, estávamos sempre correndo o risco de ver fulminados muitos procedimentos fiscais levados a cabo à época pela Receita Federal com base em lei presumidamente (e judicialmente reconhecida várias vezes como) constitucional. Casos anteriores, e mesmo casos mais recentes, como o da “Lava Jato” ou da “Zelotes”, por exemplo, poderiam ser severamente prejudicados e, quiçá, irem pelo ralo.
Bem-vinda, portanto, a decisão da semana passada porque, proferida pela maioria retumbante de 9 a 2 (vencidos os Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio), dá estabilidade e previsibilidade ao direito
.
Mas bem-vinda, também, por estar correta.
Primeiramente, está correta porque faz parte um esforço, tão necessário em nosso país, de combate à criminalidade, incluindo aquela de colarinho branco. E, em desfavor da criminalidade, a eficácia da norma que ela considerou constitucional (falo da Lei Complementar 105/2001) já está mais que comprovada, especialmente no combate à corrupção, à sonegação fiscal e à lavagem de dinheiro.
Em segundo lugar, porque, a bem da verdade, ao contrário do que muitos alardeiam (às vezes de má-fé), o que se tem na sistemática da Lei Complementar 105/2001 não é uma quebra de sigilo bancário, mas, sim, uma (simples) transferência de sigilo da seara bancária para a fiscal, mantendo-se proibição de acesso a terceiros.
Em terceiro lugar, porque, como dito acima, ela (a Lei) não fere o direito à privacidade e, mesmo que se entenda que há alguma mitigação a esse direito, não resta dúvida de que, aqui, na ponderação de valores, deve prevalecer o interesse público a que Lei Complementar 105/2001 comprovadamente atende.
Em quarto lugar, valho-me das palavras do Presidente Ricardo Lewandowski, último a votar na sessão que finalizou o julgamento, que modificou seu entendimento anterior (defendido no julgamento do já referido RE 389808, de 2010) afirmando: “tendo em conta os intensos, sólidos e profundos debates que ocorreram nas três sessões em que a matéria foi debatida, me convenci de que estava na senda errada, não apenas pelos argumentos veiculados por aqueles que adotaram a posição vencedora, mas sobretudo porque, de lá pra cá, o mundo evoluiu e ficou evidenciada a efetiva necessidade de repressão aos crimes como narcotráfico, lavagem de dinheiro e terrorismo, delitos que exigem uma ação mais eficaz do Estado, que precisa ter instrumentos para acessar o sigilo para evitar ações ilícitas”.
Por fim, reconheço a possibilidade de problemas na manipulação de dados com base na Lei Complementar 105/2001. Com certeza, devem ser institucionalizados, como quer o Ministro Gilmar Mendes, “requisitos, cautelas e procedimentos necessários à preservação do sigilo”, mas eventuais irregularidades ou vazamentos podem ocorrer. E se isso ocorrer, deverá ser apurado e punido, na forma da lei, inclusive criminalmente. Mas isso é outro crime, outra história.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL E Mestre em Direito pela PUC/SP
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