A SUPERAÇÃO –
Maria, nascida no interior do Rio Grande do Norte, era “aleijada de nascença”, como se dizia antigamente. Não tinha o braço direito nem as duas pernas. Mesmo com dificuldade, Maria aprendeu a se arrastar e andar sozinha, de joelhos, sempre protegidos por trapos, que, com o passar do tempo, foram substituídos por joelheiras. Era a 5ª filha e a única deficiente, de uma prole que chegou a 10 filhos.
Com a mente perfeita e sonhos próprios das crianças , Maria, mesmo contra a vontade da mãe, que temia que ela fosse vítima de discriminação, conseguiu frequentar uma escola particular, em Areia Branca, onde morava, e logo aprendeu a ler. À tarde, quando as amigas chegavam em sua casa, Maria brincava de dar aulas, procurando transmitir para elas, o que havia aprendido na escola. E assim, surgiu sua vocação para o magistério.
Nessa época, o deficiente físico, quase sempre, era marginalizado, sendo um peso morto para a família. Não era aceito para estudar ou trabalhar., e era excluído do convívio social..
Maria se tornou uma moça graciosa, inteligente e desinibida. Tinha uma personalidade muito forte e não aceitava ser discriminada. Logo cedo, demonstrou independência nos seus atos, dentro de casa. Dizia que queria ser professora e iria lutar por esse ideal. Passava as manhãs na escola particular e aproveitava os intervalos para ler cartilhas e livros de Português, Aritmética e Estudos Sociais.
Aos 12 anos, recebeu o certificado do Curso Primário, das mãos do mestre Albertino, dono do Educandário Padre Anchieta, particular, onde tinha passado a estudar. Mas, em Areia Branca não havia Curso Ginasial.
A família, então, mudou-se para Mossoró, para que os filhos fizessem o Curso Ginasial.. Mas Maria não foi aceita em nenhum colégio, por ser deficiente física.
A solução que a família encontrou foi se mudar para Natal, para que Maria realizasse seu sonho de continuar estudando. Maria trazia na bagagem a esperança de dias melhores. Queria estudar e trabalhar. Antes, porém, teria que fazer o Curso Ginasial. Foi aprovada mais de uma vez no Exame de Admissão ao Ginásio, no Colégio Atheneu, mas na hora da matrícula, era preterida, em virtude da sua deficiência física.. Terminou procurando o Secretário da Educação da época, que, comovido com o problema, determinou que sua matrícula fosse aceita.
Sonhava em fazer o Curso Pedagógico e ser professora em um Grupo Escolar. Enquanto isso, em sua residência, dava aulas particulares.
Depois de concluir o Curso Ginasial, Maria matriculou-se na Escola Normal do Estado, para fazer o Curso Pedagógico, e poder ser professora primária.
Quando cursava o 2º ano do Curso Pedagógico, foi editada a Lei nº 2.889, de 11 de janeiro de 1961, que trata da organização do Ensino Normal, que dispunha:
Art.. 21 – Os candidatos a exame de seleção deverão apresentar diploma de conclusão de Curso Ginasial……bem como satisfazer os seguintes requisitos:
a. Sanidade física e mental;
b. Ausência de defeito físico ou distúrbio funcional que contraindique o exercício da função docente;
c. Qualidades pessoais que o recomendem ao Magistério.” (RIO GRANDE DO NORTE, 1961)
Finalmente, chegou o ano de Maria concluir o Curso Pedagógico (1962). Maria foi escolhida a oradora da turma. Estava muito feliz, pois iria receber o tão sonhado diploma do Magistério.
Já perto da formatura, numa certa manhã, a austera Diretora entrou na classe, para perguntar quem gostaria de receber o diploma com seu nome escrito em letras góticas. Maria levantou seu único braço e respondeu:
-Eu, senhora diretora!
A diretora respondeu rispidamente:
-Você não, Maria! Você não receberá o diploma! A sua condição física não permite!
Maria, ofendida e humilhada, não conseguiu segurar as lágrimas. Saiu caminhando de joelhos, como era o seu caminhar, e se dirigiu à casa de uma irmã , que trabalhava no Palácio do Governo. Depois de alguns minutos, as duas foram expor o caso ao Governador, que se comoveu com a “via crucis” de Maria e revogou a decisão da diretora.
Maria recebeu o diploma, mas continuou impedida de lecionar em escolas públicas e privadas, sob a mesma alegação. Era deficiente física. Faltavam-lhe o braço direito e as duas pernas. Só andava de joelhos..
Diante dessa decepção, Maria continuou ensinando particular. Fundou o Externato Santa Terezinha, de sua propriedade, onde era professora e diretora.
Como era muito dinâmica, ainda se formou em Ciências Econômicas, e em 1976, quando houve eleições municipais, Maria se candidatou a vereadora para a Câmara Municipal de Natal, pelo MDB, ficando na primeira suplência.
É lamentável, que essa grande mulher não tenha alcançado os tempos atuais, quando os deficientes físicos contam com a proteção legal, em todos os aspectos. Portadora de uma mente perfeita e uma inteligência privilegiada, Maria foi excluída do exercício do Magistério, por suas limitações físicas. Uma mulher culta, grande oradora e uma excelente professora.
As peculiaridades de caráter físico podem ser consideradas como características pessoais. As barreiras impostas a Maria, pela própria sociedade, não lhe permitiram realizar seu ideal, que era exercer o Magistério em escolas públicas e privadas.
Violante Pimentel – Escritora