A VELHA RUA –

Charing Cross Road é tradicionalmente conhecida como a “rua das livrarias” de Londres, sobretudo em razão dos seus muitos comércios de livros usados ou mesmo raros (e aí talvez esteja a diferença entre os sebos e os antiquários de livros). De tão famosa, entre outras coisas, deu título a um livro, “84 Charing Cross Road”, de 1970, da escritora Helene Hanff (1916-1997), que foi bater no cinema em 1987, com craques como Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judi Dench nos papéis principais. Livro e filme contam sobretudo uma estória de amor aos livros. Recomendo-os.

Quando cheguei a Londres para o meu doutorado, em 2008, ainda encontrei Charing Cross Road fornida de muitas livrarias e sebos. No meu primeiro ano por lá, morava bem pertinho, na Great Queen Street, em Covent Garden. Achava os comércios de livros de Charing Cross o máximo. E terminava quase todos os meus dias/noites zanzando por lá.

Havia lojas gigantes como a Blackwell’s, onde, por encomenda do saudoso Dr. Ernani Rosado, comprava coleções de filmes em DVDs (ainda assistíamos a filmes assim), de craques como Alfred Hitchcock (1899-1980), com títulos ainda do seu “período inglês”, ou David Lean (1908-1991), outro gênio do cinema britânico. Com a recomendação do Dr. Ernani, adquiria coisitas para mim também. Havia também comércios bem especializados, como a adorável Murder One Bookshop, especializada, como o nome mesmo dá a entender, em estórias detetivescas e policiais. Eu adoro esse gênero de literatura, confesso. E havia, claro, os muitos sebos, que xeretava, pulando de porta em porta, descendo e subindo escadas, atrás dos títulos mais escondidos.

Ainda me recordo com saudade do meu achado, nos sebos daquela rua, de uma edição de bolso de “Ten Little Niggers” (também publicado em inglês, para evitar o título politicamente incorreto, como “Ten Little Indians”, “The Nursery Rhyme Murders” e “And Then There Were None”), da minha Agatha Christie (1890-1976). O título “Ten Little Niggers” foi praticamente banido em livrarias e até em sebos. Comprei o danado, antigo mas conservado, em um dos comércios dali (já não lembro qual), por 3 libras esterlinas. Na Internet, achei uma edição igual por 730 libras. Guardo o meu exemplar com muito carinho.

Todavia, foi ainda nos meus anos em Londres, numa dessas infelizes coincidências, que fui observando, talvez em razão do crescimento do mercado dos livros digitais, talvez simplesmente porque as coisas inexoravelmente mudam, a decadência do comércio de livros de Charing Cross Road. Alguns comércios foram fechando as portas, como a Murder One Bookshop e, um pouco depois, até mesmo a grande loja da Blackwell’s.

Tendo estado agora novamente em Londres pelo período da Páscoa, achei as coisas ainda mais tristes. A decadência dos comércios de livros físicos parece que atingiu Charing Cross Road em cheio. Outras livrarias e sebos se foram; as que ficaram, como tenho dito, só pelejam. No dia em que estive por lá, empurrando o carrinho de meu pequeno João (uma trabalheira dos diabos), vi que a fachada do quarteirão onde ficam os sebos sobreviventes estava toda em reforma. Eram tapumes por todas as lojas. Usei para mim mesmo a desculpa de estar ali com João, de ser muito difícil transitar com ele por escadas e estantes e fugi de Charing Cross. Não quis sequer ir à enorme livraria Foyles de Charing Cross, que, fundada em 1903, autoproclama possuir a maior quantidade de diferentes livros em estoque da Europa (coisa de 200 mil títulos, afirma, mas não sei dizer se é vero ou não). Espero que a reforma venha salvar ou, ao menos, dar sobrevida aos queridos sebos.

Na verdade, desanimado com a velha rua das livrarias, preferi ir caminhar em Cecil Court, ruela de pedestres que liga Charing Cross Road à St. Martin’s Lane, na direção de Covent Garden. Lindinha, pitoresca, parecendo ter parado no tempo, ela continua tomada de pequeninas lojas, livrarias e sebos especializados em livros antigos, primeiras edições, mapas, gravuras, ilustrações e em temas tão variados como línguas, automóveis, música, numismática, teologia, magia e por aí vai. Sobre essa ruela mágica falaremos qualquer dia desses. Prometo.

 

 

 

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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