Carlos Alberto Josuá Costa
“A melhor harmonização com um tinto aromático é a tua presença” (CAJCosta).
Dezenas de vezes abri a porta da adega e num colóquio dionisíaco pedi paciência àqueles que plantaram, colheram, processaram e engarrafaram as castas que ali dormiam, sem nenhuma esperança de romperem os grilhões das cortiças que aprisionavam os aromas e os sabores universais.
Sabe aquela vitrine – no tempo que manequim tinha cabeça – em que não só a roupa é que chamava atenção? Quando alguém desnudava o manequim, assim mesmo ele continuava sorrindo. Com as garrafas isso não acontece. Ao deslizar cada uma delas na prateleira e em seguida devolvê-la ao mesmo espaço, percebo o rótulo sôfrego como que se sentindo abandonado.
O pior é que eles, os vinhos, estão em prisão domiciliar, e mesmo cumprindo um terço da espera na adega, ainda não conquistaram o direito à liberdade. Continuam lá, doidos para bailarem nas taças e degustados, inebriantes por palavras amorosas e cheias de taninos: “Uma delícia!”.
Como consolo, percorro os dedos no ‘menu dvd’ em busca de cenas em que vinhos e diálogos são manifestações de contentos entre amigos e amantes, como em “Entre Vinhos e Amores” e “Acima das Nuvens” – o primeiro saboreado em taças para esquentar os corações, o segundo em copos que libertam lembrança de amor não realizado: bem feito, quem manda ‘beber’ vinho em copos.
Os dias passam, e a cada final de semana, abro novamente a porta da adega e já temeroso que elas se revoltem, balbucio: tá chegando a hora!
Quando perambulo entre as gôndolas de queijos, meus olhos marejam em solidariedade aos tintos encarcerados e imagino a cena surreal em que taças tilintam em brindes de saúde, amizade, realização, enlevos e histórias de amores.
É como me ver numa superfície cristalina, onde o balançar das águas refletem o ambiente preparado para receber os entes queridos, e o tic-tac silencioso ir ditando o empurrar dos ponteiros, sem o tempo efetivamente passar.
No filme “O Cavalo de Turim”, tem uma cena em meio à tempestade de ventos, onde o cavalo é preparado por um camponês húngaro, com arreios e colocação da carroça, que o levará ao vilarejo mais próximo para obter batatas, e na hora da partida – empaca – e mesmo sob violenta pressão, não arreda a pata. Essa cena me lembrou de toda uma arrumação mental onde preparo a mesa, ornamento com desejos, exponho o coração acolhedor, liberto o vinho da adega, arrumo os queijos, pães e pastas especiais, aproximo as almofadas, antevejo os momentos de alegria, repasso as música escolhidas e nada acontece: empaca.
Tento fazer um jogo de espelhos, mas apesar de me ver infinito, mais e mais me percebo sozinho. Você não estava, nem você, nem você… E cada vez que curvo a cabeça todos os “eus” me questionam a sua presença, e a sua também.
Nada acontece. Nada resta. A não ser renovar a esperança – é a última que morre – dando-me a certeza que ainda não é o fim.
Mudo o pensamento, ponho os óculos e me debruço na leitura de “Havana – Em Busca da Noite Perfeita” do amigo escritor Aluísio Azevedo Júnior, e no deleite do enredo extraio: “Eu confiei algumas palavras ao silêncio. Será que se esconde aqui a minha noite perdida”?
O que fazer?
Esperar que o tempo se amolde ao ensejo de cada um, como que ajustando a sintonia fina do mesmo desejo de libertar o néctar dos deuses, como símbolo de regozijo, cumplicidades, confidências, gracejos e afetos.
E então recorro novamente a “Havana”: “Não sei o que posso, se permaneço ou me desfaço. Não sei, não sei.”
Abro mais uma vez a porta da adega e carinhosamente digo: amanhã nos veremos.
Adormeci e ao despertar no meio da noite me inspirei para escrever este artigo.
A noite não foi perdida.
Ainda assim, também busco a minha noite perfeita.
Carlos Alberto Josuá Costa, Engenheiro Civil e Consultor (josuacosta@uol.com.br)
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