AFINAL, E O CAFÉ? –
A chaleira era daquelas que apitam quando a água está fervendo e tinha acabado de ser colocada sobre a boca maior do fogão. Em cima da pia, já aguardava pela água fervente o bom e velho kit “empoderador” do genuíno do líquido negro: o pano de café, este já bem curtido, acomodava a quantidade usual de pó de café, sobre uma leiteira de teflon, que, diga-se de passagem, nunca viu leite, usada apenas para coar café. Coisa de quem gosta de inventar marmota, se bem que tem quem chame tais manias de gambiarra. Mas, deixa para lá! vamos seguir com a prosa.
Sentada à mesa, aguardando o cafezinho da tarde, estava a primeira da linhagem de meus pais, minha querida irmã, fiel amiga e conselheira – ela desempenha bem o papel da irmã mais velha -, e, nesse dia, não foi diferente.
Enquanto aguardávamos o apito da chaleira, desembocamos numa conversa daquelas para encher linguiça. Por um lado, eu contava a ela sobre o triste (ou seria feliz?) hábito de meus disparates no meio do expediente de trabalho, nas rodas de conversas informais, em qualquer lugar que eu estivesse. Não obstante, fatos corriqueiros tomam grandes proporções quando encasquetados em meus pensamentos, coisas de quem vive de devaneios e, às vezes, chega a confundir vida real e “mundo de Sofia” – termo usado pela minha irmã caçula, para fazer referência às minhas viagens “devaneantes”. Pois bem, lá estava eu dizendo, à minha consanguínea, que nesses momentos tem sempre alguém (os mais chegados, é claro), para me puxar do alto dos meus delírios. O que mais escuto dizerem é: – Ei, moça, volte aí do seu mundo de Sofia, saia desse transe e se conecte à realidade, tem vida real nos esperando aqui na Terra. Eu sei, e muitos dos que me conhecem também sabem que basta uma palavra para eu borboletear nos jardins dos meus pensamentos, cheios de cores e formas. Uma palavra, nesses casos, pode ser o bilhete de embarque em mais um dos muitos universos que vivo a naufragar, muitos deles inavegáveis, mas, uma tentação de aventura quando das minhas interrogações.
– Alto lá! – pensou em voz alta a primogênita das três filhas de Dona Socorro. Já ouvi essa frase, se bem que não assim exatamente. E continuou a pensar.
Percebi que ela mergulhou nas suas lembranças e foi buscar, em algum arquivo da memória, a cena que a fez se conectar à referida expressão “Mundo de Sofia” com o diálogo que rolava entre nós duas.
– Já sei! – lembrei. É mãinha que diz: – Todos os meses, vejo-me diante da “escolha de Sofia”.
Sim é ela, a nossa mamis poderosa, que se utiliza da dita frase para justificar suas idas e vindas, se possível, várias vezes por semana, entre a capital do Estado e a cidade em que se casou e constituiu família, isso no tempo do “cuspe”, quando ainda tinha o Cine Pax na cidade e que se podia dar voltas pela Praça da Catedral, após a missa do domingo à noite. Hoje em dia, com a violência que assola a cidade, mal o padre diz amém e só se ouvem os apitos dos controles dos carros sendo destravados e a carreira tapada dos fiéis para dentro dos seus veículos. Retornar para casa a pé, só se for em bando, e ligeiro, isso, se quiserem chegar sãos e salvos. Bom, vale dizer que, ela saiu de malas e cuias há mais de 40 anos de lá para morar na capital. Exatamente por isso, por não ter mais “nada” que a faça retornar – toda sua prole seguiu com ela para a Cidade do Sol -, que ela arruma desculpas para nos engabelar.
– Mas, o que quer dizer mesmo essa frase? – pergunta-me ela, prosseguindo: – Já pesquisei antes, mas não estou lembrando sua origem neste momento.
Eu, metida a sabichona e para lá de presunçosa, já fui logo filosofando, evocando a mitologia grega para prelecionar sobre as dúvidas levantadas pela querida irmã. Agora era chegada a hora de a irmã do meio, “Euzinha aqui”, se “amostrar”. Foi o que eu fiz sem pestanejar. Rasguei o verbo dissertando sobre a mãe da sabedoria, à luz da filosofia e, pior, fazendo convictamente relação com a frase que ela havia destacado: A escolha de Sofia. Traduzi sem nenhum embaraço, com a certeza dos tolos:
– O que a nossa amada mãe quis dizer foi que todos os meses ela tem de fazer uma escolha com sabedoria…
– Êpa! Alto lá! – de novo, lá vem ela me interrompendo, coisas de irmã mais velha. Mal terminei a frase e já fui bombardeada pela revolta de quem tem sua pressão às alturas todas as vezes que descobrimos que nossa mãe viajou para a terra do sal, pronunciou: – Ela pode fazer qualquer coisa com essa tal escolha de Sofia, menos escolher com sabedoria, e sabe do que mais, vou olhar no Google, é o melhor que faço, para sair dessa dúvida.
Nisso, já foi utilizando seu celular para a pesquisa avançada.
Não demorou muito o escarafunchado e o “sabe tudo” do Google esmiuçou a informação de que “A escolha de Sofia” se trata do título de um livro e de um filme. História verídica passada durante a Segunda Guerra Mundial, num dos campos de concentração do Holocausto, que retrata a difícil decisão de uma mãe, em escolher, entre seus dois filhos, quem continuaria vivendo e quem deveria morrer, sob pena de, em caso de ausência da escolha, ver a morte dos dois filhos. Um deles sobreviveria desde que ela sentenciasse quem morreria.
Realmente, uma dificílima escolha, diria que, a mais cruel e desumana para uma mãe, massacrada pela escolha, sendo ela a guardiã dos seus rebentos. Imagino o suicídio diário que ela deve ter vivido pelos dias que lhe restou, depois do fatídico dia.
Tudo bem que “A escolha de Sofia” e “O mundo de Sofia” sejam livros diferentes. Sabe do que mais? Que sejam mesmo diferentes, pois me leva a fazer um baião de três com as sobras que restaram do significado filosófico da palavra Sofia: A escolha de Sofia e O mundo de Sofia, pensando melhor, bem que poderia ser um sarapatel. Todo esse misturado, na verdade, leva-me a pensar nos critérios estabelecidos por Sofia, a mãe das crianças naquele instante de desespero, para chegar ao veredito final. Sim, creio que pesou aquilo que seu nome significa: mulher sensata e prudente. Mas, como poderia alguém, nessa situação, ser sensato e prudente? Sim, é necessária muita sabedoria para tomar decisões difíceis, das quais possam se arrepender depois. No caso de mãinha… juro que pelejo para fazer a matemática dela, a matemática que vem se repetindo ao longo dos anos e sempre com as mesmas operações – elevando nossa pressão, multiplicando nossas preocupações, diminuindo nosso sono e somando os cuidados que nos conferem para que ela chegue sempre ao seu destino sã e salva. “Entrega o teu caminho ao Senhor; confia nele, e ele o fará” Salmos 37-5. Já que não podemos usar desse versículo: “Porquanto o Senhor corrige a quem ama, da mesma forma que o pai repreende”. Provérbios 3:12. Resta-nos fazer de conta que acreditamos que essas viagens, sem precisão, que ela faz, são frutos de árduas escolhas de sua parte.
Pois bem, ao versejar por esse banquete de interrogações, volto à prova dos nove fora, fico toda embananada e penso que deveria estudar mais e tentar um novo concurso, quem sabe para a magistratura. Vai que ela temesse uma filha juíza!?
E o café, onde foi que ficou nessa história toda? Deixe eu finalizar esta crônica, contando mais um dos muitos causos de minha mãe, e vocês já entenderão o que aconteceu com o café. A chaleira, que foi ao fogo logo no início desta prosa, foi adquirida num desses city tour que minha mãe sempre faz à feira do Alecrim, bairro popular da capital. Ela se encantou, logo de cara, com aquela peça de aço inoxidável, lustrosa e reluzente feito prata das boas, ainda mais que estava numa hiper mega promoção, disse ela, ao relatar-me seu feito: – O preço estava quase de graça, minha filha, não contei conversa, comprei!
Assim ela não pensou duas vezes e bateu o martelo levando a chaleira para me presentear. Só um detalhe: o preço tinha caído drasticamente devido ao extravio do bico apitador da chaleira. Acho que vocês já imaginam, depois de todo esse proseado, de que cor ficou a chaleira, não é mesmo? Ficou da cor de “tirna”!
E ainda me perguntam a quem eu puxo. Puxo não, herdo!
Flávia Arruda – Pedagoga e escritora
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