ALCAÇUZ: ANÁLISE DE UMA CRISE ANUNCIADA – Ivenio Hermes

 

UMA CRISE ANUNCIADA – 

Indícios de uma futura crise 

No dia 11 de março de 2015, uma rebelião teve como palco os pavilhões 1 e 4 de Alcaçuz, e a falta de controle do Estado sobre uma penitenciária que se afirmava ser de segurança máxima, resultou em estragos destruidores de parte da Penitenciária de Alcaçuz.

Não restou uma só cela inteira, as grades foram arrancadas e as paredes colocadas abaixo, numa visível demonstração de poder dos detentos sobre o Estado. E embora Alcaçuz tenha passado por uma vistoria minuciosa pelos agentes penitenciários apoiados pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar e homens da Força Nacional, e mesmo tendo sido encontrados celulares, mais de uma centena de facas artesanais e carregadores de celulares, a situação foi considerada tranquila, segundo afirmou a própria SESED na época.

A destruição em Alcaçuz nunca foi desfeita, os apenados ficaram apenas contidos dentro dos muros da penitenciária, mas com trânsito livre e sem a menor condição de controle.

Após esses eventos houve troca de direção, e a nova equipe de administradores identificaram imediatamente que estavam lidando com uma situação muito séria e cuja solução seria a reconstrução dos pavilhões, e a tomada do controle sobre a população carcerária, mas como fazer isso com apenas seis agentes por plantão para cuidar de uma penitenciária parcialmente destruída, cuja capacidade era de 620 vagas e cuja lotação era de 1.240? Somente se o Estado resolvesse investir urgentemente em reconstrução e contratação de amis agentes penitenciários.

Primórdios

Fugindo do projeto original, nem área construída, nem locação adequada, nem processo construtivo foi obedecido, e o resultado foi a criação de um presídio sobre dunas sujeitas a constantes mudanças de formato devido a movimentação de terras que as removeu para dar lugar ao sítio de locação da construção.

Sem piso de concreto nas especificações devidas e paredes frágeis, a penitenciária se tornou conhecida como ‘queijo suíço’ pelos inúmeros túneis cavados pelos detentos em tentativas de fuga.

Erros de segurança como guaritas sem condições de uso e sem comunicação umas com as outras, ângulos de posicionamento que em alguns casos tornam imensas áreas invisíveis aos olhos dos guariteiros, proximidade perigosa com a comunidade local, em certos lugares, a proximidade do quintal das casas do muro é tão pequena que arremessar “materiais” para dentro do presídio é a coisa mais fácil do mundo, podendo ser feito até à mão livre.

As dunas do lado de fora foram se movendo e crescendo, permitindo uma visibilidade perigosa de dentro do presídio.

Destarte, mesmo respeitando técnicas modernas de arquitetura e engenharia, a execução não seguiu o projeto.

Suscetibilidade Adicional

A massa carcerária contida, porém, não controlada de Alcaçuz é composta principalmente por duas facções rivais, o Primeiro Comando da Capital e o Sindicato do RN, ambos inimigos declarados que vivem em constante ameaça, além de um grupo neutro que se autodenomina de “Massa”, que vive no meio desse conflito.

O poder dessas principais facções nunca foi subestimado pelos agentes penitenciários nem pelos diretores do presídio, mas como criar informação crível se eles não possuíam e não possuem até hoje um mapeamento censitário com alta capacidade de captação e filtragem de dados para elaborar relatórios de inteligência? E ainda, não existe um sistema de inteligência ativa no sistema penitenciário do Rio Grande do Norte e a falta de integração, e, portanto, de colaboração, entre os grupos de inteligência subordinados à SESED para subsidiar a SEJUC.

Sem integração, o cenário só tenderia a piorar.

Julho de 2016

Uma nova crise de desenvolve no sistema quando da retaliação de facções criminosas às ações de instalação de bloqueadores de celular nas penitenciárias do RN. Foi nessa ocasião que, mesmo sem um serviço de inteligência integrado, não mais se podia ignorar a capacidade do crime organizado e sua rede de articulação entre o interior e o exterior dos ambientes prisionais.

Reativo como sempre, a SESED só percebeu que tinha que agir quando diversos ataques à segurança da população foram cometidos. Ônibus e outros veículos queimados, prédios públicos atacados e o direito de ir e vir cerceado pela insegurança instalada nas ruas de Natal e diversos municípios do Rio Grande do Norte.

A solução reativa na época foi a solicitação de tropas das Forças Armadas para agirem como força de segurança e restaurar a ordem no caos que a falta de antecipação e planejamento da gestão estadual tinha causado.

Agora

Com os eventos ocorridos nas penitenciárias de Manaus e Boa Vista, e o RN sendo inserido numa lista de estados onde possíveis retaliações poderiam acontecer, haja vista as ligações das facções do estado com comandos espalhados pelo Brasil, era necessário que minimamente a gestão estadual se preparasse para eventuais ocorrências e se antecipasse em verificar quais as penitenciárias onde haveria mais representatividade do PCC, que tencionava se vingar pelas mortes ocorridas em Manaus.

A gestão estadual não aprendeu com suas próprias falhas e continuou subestimando o poder do crime organizado, ou por falta de informação fornecida pelos organismos de inteligência do estado, ou pela tentativa de gerar uma falsa sensação de segurança.

O crime organizado, por meio de suas conexões e capacidade de articulação se preparou para agir, identificou os prontos fracos da polícia e dominou Alcaçuz:

  • Se preparou com antecipação e lançou um ataque estratégico poucas horas antes de escurecer, cortando a iluminação e promovendo uma barbárie assassina no interior de um prédio que em, usando a escuridão como proteção pois no mínimo desconfiavam que não seria um procedimento seguro adotado pela polícia o adentramento do presídio nas horas noturnas;
  • Ao amanhecer a PM entra nas instalações, mas mantém apenas o controle suficiente para a retirada dos corpos das vítimas da guerra entre as facções;
  • A PM se retira em seguida da área já ocupada e se limita, juntamente com a Força Nacional, a fazer segurança do perímetro externo. Essa ordem dada à PM causou um fortalecimento dos detentos que veem nesse tipo de atitude um sinal de fraqueza, afinal, uma vez ocupado o espaço interno, recuar aparentava isso;
  • A retirada de supostos líderes causa estranheza, e sem um canal direto com o Ministério da Justiça, o Governador se vê obrigado a viajar para Brasília em meio à crise para conseguir apenas a permanência da Força Nacional por mais tempo;
  • Enquanto isso, os detentos têm tempo para se rearticularem, e começam a erguer barrocadas em claras demonstrações de que um novo embate se sucederia;
  • O desencontro de informações, a ausência de um discurso único na ação, deixa polícias militares, civis e agentes penitenciários em expectativa sem saber qual o próximo passo que deveriam dar;
  • Instala-se um clima de desconfiança de uma possível negociação entre governo e facções criminosas, resultando numa operação para permutar ou transferir presos, contudo sem ser antes articulada com o Judiciário. Uma grande operação é preparada movimentando até a Polícia Rodoviária Federal, mas que no último instante precisou ser desfeita, pois não havia autorização judicial e nem condições para o procedimento;
  • Surgem ideias de contratação temporária de agentes, algo temerário, pois agentes de segurança pública requerem altos investimentos em treinamento e tem acesso a informações e procedimentos que não podem simplesmente no futuro serem descartados, algo suscetibilizaria mais ainda o sistema prisional;
  • A instabilidade nos escalões do governo dá sinais de existência enquanto dentro do presídio, os detentos se armam e ocorre o segundo confronto com imagens de disparos de arma de fogo e além das 26 mortes do primeiro dia, agora se considera mais mortes, e feridos são retirados para serem socorridos;
  • O governo surge com a ideia de fazer um paredão humano enquanto se constrói um muro para separar as facções, essa atitude não leva em consideração a exposição dos policiais, o fator tempo para se construir tal muro, as condições de terreno, e para justificar esse erro, o Comandante Geral da PM admite na TV e para um jornal local que o governador ouviu esse conselho de pessoas não técnicas e que jamais deveriam estar na área de influência de decisões altamente sensíveis que envolvem a segurança da sociedade potiguar;
  • Em esforço sobre-humano, o ITEP identifica 21 dos 26 detentos assassinados sem deixar de atender suas demandas em outras áreas;
  • O presídio de Alcaçuz, no sétimo dia de controle total dos detentos, está praticamente destruído…
  • Tropas das Forças Armadas chegam ao estado, um retorno às mesmas soluções de uma gestão que se diz técnica, mas não se prepara para solucionar problemas, tendo que enfrentar crises que poderiam ter sido evitadas.

O dano de pequena monta que se tinha no amanhecer de domingo, se transformou na já considerada perda total de uma unidade prisional de vital importância para o estado.

O Futuro

O que podemos esperar da atual gestão face aos desencontros e ausências de planejamentos estratégicos, falta de plano de segurança pública e onde duas secretarias de vital importância não se comunicam colaborativamente?

Não podemos saber ao certo, mas sabemos que o futuro se constrói no presente e o passado deve ser um grande professor, ensinando por meio da história, a parar de adotar soluções imediatistas e restritas a políticas de governo que sofrem com a descontinuidade.

É preciso investir na contratação de agentes penitenciários fazendo esse número de contratados ter relação com a criação de vagas, baseado em estudos técnicos que gerem o equilibro necessário para permitir que o estado adquira o controle da massa carcerária. Criar vagas e construir presídios é muito importante, desde que nesses novos estabelecimentos prisionais não se repita o descontrole existente nos que já estão construídos.

Inclua-se nesse raciocínio uma capacitação continuada e permanente dos agentes penitenciários, fortalecendo grupos táticos de pronto emprego para intervenção em situações de crise. Isso promoveria a volta do respeito dos detentos aos agentes penitenciários.

O poder executivo, responsável pela segurança dos cidadãos, deve assumir o protagonismo da busca de soluções exequíveis. Nesse contexto, conclamar o Ministério Público, o Judiciário e a Defensoria Pública, para realizar mutirões para esvaziar os presídios daqueles presos que não representem periculosidade para a sociedade.

Convocar técnicos e especialistas em todas as áreas para criar soluções construtivas mais rápidas, gerando um projeto exequível que venha a transformar realmente presídios em locais para se pagar uma pena por ter desobedecido o pacto social com a sociedade, e não um lugar abjeto onde se propicia o aliciamento, a desumanização e o fortalecimento de práticas que se constituirão no fortalecimento do crime organizado e do surgimento de novas facções criminosas.

Ivenio Hermes – Consultor de Políticas Públicas de Segurança; Coordenador do OBVIO – Observatório da Violência do Rio Grande do Norte e Membro Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Ponto de Vista

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