Mantenho reações conservadoras diante dos fatores imanentes e iminentes da vida. Sou devoto dos hábitos e da retórica provinciana do interior. O costume secularizado da cadeira na calçada, da brisa sedutora do fim de tarde, do grito heróico do vendedor de cuscuz e mugunzá ainda me apascentam. São crenças básicas na simplicidade da vida como perpétuo e inalienável direito de existir, misturado ao povo miúdo, posto ser melhor do que o absolutismo dos donos do palanque e da burguesia consumista e desfigurada pelo cinismo materialista. Mas fui tomado pelo fascínio de mesclar
Nenhum vestígio que se possa recolher da minha travessia terrena não passará da impressão de algo plástico, aéreo, estelar, humano e sobre- humano, difuso mas cintilante, místico e mítico. No meu bairro sou donatário da capitania não hereditária. Ou seu capataz dos mistérios circundantes como Cláudio Emerenciano e Vicente Serejo, hoje em Morro Branco. Não renegam a horizontabilidade urbana de onde extraem a alma e o sumo das verdadeiras descobertas. A minha rua em Lagoa Nova é modesta. A iluminação pública espalha no calçamento parnasiano a luz mortiça amarela, qual um abajour lilás. No céu estrelado passeio a nostalgia que vem da herança telúrica de um tempo que a memória ainda não desfez. O rio, a casa, a lua, a calçada, as aparições noturnas.
Minha angustia factual e meu desespero tipicamente social estão inseridos no contexto das doenças que as seguradoras de saúde não cobrem. Componho o universo sensível, ferido, por vezes amargo e infeliz, que abomina a marginalização dos pobres, dos velhos, das crianças, vítimas do perverso sistema econômico-social. Por isso procuro a terra habitada pelo silêncio e pela distância das coisas, porque o meu grito é cárcere concreto e real e já não se faz mais ouvido. Conforta-me que as palavras não são fugazes nem constituem perdas instantâneas. Meu canto é harmônico sem divagações nem desvios, embora as tensões e os influxos se cruzem, se choquem mas não se anulam.
Volto a minha ruazinha comum. Nela não residem poderosos. Afinal, sozinho perscruto a tolice dos seus mistérios visíveis e invisíveis. Não há muito que sonhar. Como mergulhador penetro nas ruínas da alegria de sua pobreza, sem jardins, às vezes, sem chananas, refletores ou praças. Rua opaca, empírica, apenas onomatopaica. Mas, é o território dos meus vãos e desvãos. Nem fantasmas líricos e bufões aparecem. Somente vislumbro minhas relíquias imemoriais da infância e da adolescência. Restos sagrados nos olhos de quem é intimo da ilusão, eterno aprendiz de um mundo de contradições, mas também
repleto de lembranças antigas e serenas. Tudo torna minha rua como a quero ver.
Mas, há quem não goste da época chuvosa e fria dos últimos dias. Só não podem negar que o vento e o frio, elementos naturais de Deus, exercem poderosa força proustiana em busca do tempo perdido em cada um de nós. São como se fossem energias cósmicas renováveis provindas de antiquíssimas mutações planetárias. Até porque elas são geradas na atmosfera terrestre. Não quis ir tão alto. Prefiro a humanidade comum das coisas simples de explicar. E, às vezes, o pior é que elas não são tão simples como parecem. Por isso, volto à solidão do meu quarto, onde permaneço em comunhão com a frialdade da madrugada incomum, mas hospitaleira. Sei que mais tarde terei outra sinfonia. A dos pardais, logo nas primeiras horas da matina, como se vaiassem o sol emergente. Diante de tudo, e apesar de tudo, a quem foi concedido o direito de desconhecer tais coisas: o vento, o frio e a chuva? Termino dizendo que elas estão, não somente fora de nós, mas, principalmente, dentro de nós.