AMIGOS FAZEM FALTA

Quando eu era repórter do Jornal de Alagoas, Maceió era uma cidade pequena, com algo em torno de cem mil habitantes. Poucas eram as notícias que não se originavam na própria província. Como eu morava perto do Hotel Atlântico, criei o hábito de passar por lá para saber dos hóspedes do que era, então, um dos melhores hotéis da terra dos marechais.
Um dia, vendo o livro de registro, deparei-me com um nome, José Pancetti.

– Seu Miranda, qual o quarto desse hóspede? – Perguntei.

– Ah! É um pintor de paredes. Está no porão – Foi a resposta.

Só que Pancetti era um dos maiores artistas plásticos do Brasil. Fiz uma entrevista com ele e me transformei no descobridor de Pancetti, em Alagoas. Esse foi o início do meu convívio com os artistas da pintura. Depois estreitei meu relacionamento com Pierre Chalita, Maria Tereza e outros “pratas” alagoanos. De lá para cá sempre procurei cultivar o convívio com esses seres tocados pelo dom de captar instantes de vida ou dos outros seres, dando-lhes realce e cor com uma simples pincelada. Até Goreth, minha mulher, era pintora.

Mas, voltemos à história. Retornando para o Rio Grande do Norte, fui morar na minha cidade, Mossoró. Entretanto sempre vinha a Natal, onde conheci e fiz amizade com Newton Navarro. Em uma manhã de um dia de outubro de um ano que já vai longe, 1961, estávamos eu e Newton tomando uns chopes na Confeitaria Cirne, ali na João Pessoa, no Grande Ponto, o ponto onde tudo acontecia ou onde tudo era comentado em Natal, quando ele me apresentou a duas figuras que, como ele, pontificam na história da cultura do Rio Grande do Norte: Veríssimo de Melo e Dorian Gray Caldas. Com aquela sua peculiar capacidade de descrever as coisas com um simples rompente verbal, Newton foi sintético no descrever dos personagens:

– Dorian pinta com cores encantadas que eu gostaria de copiar. Veríssimo escreve com saberes que eu gostaria de saber dizer.
Como é próprio a uma mesa de bar, a conversa fluiu fácil e solta. Navarro queria que eu, um jovem repórter, escrevesse um romance, tendo como pano de fundo as salinas de minha terra. Dorian disse que faria as ilustrações, pois um livro desses haveria de ter muitas imagens fortes. Por sua vez, Vivi, antecipadamente, comprometeu-se a escrever o prefácio de um livro que não existia, dizendo, mais ou menos, que começaria assim: “A força dos homens sempre está na sua disposição de luta, ainda mais quando…”

O livro nunca foi escrito, o prédio da Confeitaria Cirne hoje é ocupado por uma loja, Newton virou nome de ponte e, como ele, Veríssimo e Dorian não estão mais entre nós. Deles tenho a lembrança, a saudade e os seus livros autografados que ganhei naquele dia; “O solitário vento de verão” e “Cantadores de viola”. Quando vejo as obras de Dorian sempre me curvo perante aquelas cores de que Navarro falava. Cores vivas ou pastéis, mas que expressam um estado de sentimento; que fazem a interface entre o artista e o público. Cores do Nordeste, cores do Rio Grande do Norte. Cores de Dorian Gray Caldas. Seu vermelho ocre, seu verde cambiante, seu amarelo entremeado de uma variedade quase infinita de tons laranja e avermelhados e seu azul, vezes fulgente e outras quase mórbido, constroem um mundo de uma beleza que é só dele, o artista que extravasa talento, que disciplina a técnica para que ela não iniba a sensibilidade de quem, além de pintor, era escultor, tapeceiro, escritor, poeta, imortal e meu amigo por quase meio século.

Todos já partiram para o campo dos lírios do Senhor; somente eu ainda estou por aqui. Como era bom ter amigos desse naipe.

 

 

* Publicado originalmente em Tribuna do Norte. Natal, 25 mar. 2022

 

 

 

Tomislav R. Femenick – Jornalista

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