ANTA ESFOLADA –

Nasci e me criei em Nova-Cruz (RN), às margens dos rios Curimataú e Bujari.

Faz parte da história de Nova-Cruz uma suposta lenda, que diz que, séculos atrás, no vale do Curimataú, habitava uma anta de espírito maligno, que assombrava os moradores e boiadeiros que por ali passavam.
Com o propósito de retirar seu feitiço, um caçador resolveu prendê-la e esfolá-la viva. Ao receber o primeiro golpe, a anta deu um pulo, deixando sua pele nas mãos do seu algoz. Embrenhou-se na mata, assumindo a forma de um animal feroz e demoníaco, com dois chifres, tal qual o demônio. A partir desse dia, a anta esfolada passou a aterrorizar os moradores, correndo como um relâmpago, rodeando as casas, fedendo a enxofre e roncando alto.
O primeiro nome de Nova-Cruz foi Urtigal, devido ao matagal de urtigas que cercava o arruado. Depois, o acontecimento nefasto da anta demoníaca fez com que o povo passasse a chamar Urtigal de Anta Esfolada.
Numa 6ª feira, 13 de agosto de 1813, a anta esfolada apareceu em Urtigal, dando pinotes e parecendo estar possuída pelo demônio. Cada testemunha da terrível aparição contava o fato, acrescentando detalhes fantasiosos e apavorantes. Foram muitas as narrativas mirabolantes sobre a anta maldita. As pessoas contavam a história, acrescentando detalhes fantásticos da possessão demoníaca do animal.
O boiadeiro Zé Bedeu chegou ao Urtigal e contou que no caminho, uma anta esfolada e com chifres, se meteu no meio do gado e espantou as reses. Apareceu do nada, correndo e pulando, como se estivesse com o demônio no couro. E assim, provocou o estouro da boiada;

Tonhão contou que foi tomar banho na lagoa, e quando saiu da água viu um bicho parecido com uma anta, se estrebuchando nas cinzas de uma coivara. Bufava e fedia a enxofre. Assombrado, o homem chegou em casa numa carreira só, como se tivesse visto o próprio demônio;

Joaninha de Bento contou que estava deitada, quando ouviu um estrondo, que parecia um trovão. Olhando pelas frestas do telhado, viu um fogaréu se espalhando pelo Céu, soltando faíscas para todos os lados. Sentiu-se sufocar com oa cheiro forte de enxofre e logo ouviu um tropel se aproximando. Saiu para ver o que era e viu passar um homem a cavalo, segurando uma pele ensanguentada. O homem tinha dois chifres na testa!

O assunto correu de boca em boca, espalhando o terror.

Mesmo contra a vontade dos proprietários daquelas terras, o povo passou a chamar Urtigal de Anta Esfolada. E o nome pegou.

Em qualquer ambiente, quando alguém se referia a Urtigal, as pessoas se benziam e acrescentavam que era o lugar onde apareceu a anta esfolada. Indignados, os proprietários se mudaram para a Serra do Pires, que depois passou a ser chamada de Serra de São Bento. Eles consideravam pejorativo o nome “Anta Esfolada”, e achavam que esse nome concorreria para o declínio de seus empreendimentos. Mas, pela vontade do povo, o lugarejo passou a ser chamado definitivamente de Anta Esfolada.
Esse nome permaneceu por algum tempo, até que viessem para lá as primeiras missões de evangelização, dirigidas pelo frade italiano, Frei Cipriano.
Os missionários, que chegaram àquele povoado para evangelizar, se chocaram com a origem nefasta do nome Anta Esfolada, e fizeram uma campanha para que fosse mudado. Conseguiram convencer o povo a aceitar que o nome fosse trocado para NOVA-CRUZ. Para isso, encomendaram uma enorme cruz de madeira e fincaram ao solo, e também uma placa, onde em letras garrafais, estava escrito NOVA-CRUZ – RN. Os frades capuchinhos, que lá estavam evangelizando, logo celebraram uma Missa no local, a que compareceram todos os moradores do lugarejo.
As Santas Missões em Anta Esfolada, praticamente começaram com a Missa da Meia Noite, na véspera de Natal.

Durante uma semana, todos os dias, ainda de madrugada, Frei Cipriano deixava o leito e fazia uma caminhada pelo povoado. Uma multidão já o esperava para a procissão matinal. Um Coroinha tocando uma sineta, animava o povo, cantando o bendito Vinde Pais e Vinde Mães.

Às seis horas da manhã, no local onde seria construída a futura capela, Frei Cipriano celebrava a Santa Missa. Era uma palhoça de folhas de sapé em frente do cruzeiro e do palanque. Só às oito horas, o frade tomava o café da manhã. Todas as vezes que os frades deixavam o local para fazer as refeições na casa de um rico fazendeiro, uma pequena multidão os acompanhava.

Durante o dia, na latada, os missionários ouviam as demoradas confissões.

As crianças eram acolhidas por catequistas que levavam o grupo para a areia do rio, para os folguedos próprios da idade e, rezando em voz alta, aprendiam as orações básicas do catecismo.

À tardinha, a multidão comparecia em peso ao grande acontecimento religioso. No palanque, Frei Cabral, com forte sotaque italiano, ensinava ao povo os benditos, principalmente um que se tornou o símbolo das Missões dos frades capuchinhos do Nordeste:

“Abençoe esta missão

Virgem Mãe, Nossa Senhora

Dá-nos tua proteção

Oh! Senhora Imaculada!”

Depois, Frei Cipriano proferia o seu sermão.

Ele tinha o dom de cativar os afastados de Deus, que sentindo o apelo divino, desejavam mudar de vida e, assim, esperavam horas e horas na fila, para se confessar com ele. Os outros frades disponíveis para esse atendimento tinham as filas bem menores. Muitos fieis, mesmo depois de terem se confessado, voltavam à fila de frei Cipriano, atraídos pela sua cativante simpatia, e se confessavam novamente. E não ficava ninguém sem se confessar.

Muitos afirmavam que ele perguntava por pecados escondidos, e que tinha o poder de adivinhar o que tivesse acontecido na vida de quem estivesse se confessando.

Assim era a rotina das missões de Frei Cipriano, em Anta Esfolada.

O último dia das missões foi muito emocionante. Era o dia 31 de dezembro de 1846, o último dia do ano.

Depois do meio dia, o frade mandou chamar o povo para uma confissão comunitária. Sentados em torno dele, todos formavam um grupo todo especial.

O frade se dirigiu ao grupo dizendo que tanto Deus como o Demônio podiam agir no mundo através dos homens. E como um adivinho, começou a falar sobre o que tinha acontecido na vida daquelas pessoas, relatando fatos antigos. Falou da ação do Demônio no episódio da anta esfolada e da ação de Deus, livrando o povo daquela maldição.

Já estava escuro quando os frades acenderam uma grande fogueira junto do cruzeiro. Era a última noite de missão, a despedida geral. Os índios se aproximaram trazendo dois anciãos. Um deles, João Bento, pediu para ficar mais perto da fogueira e, inesperadamente, jogou no fogo um anel de couro ressequido. Era o couro da anta esfolada, a última lembrança de seu passado maldito, que devia ser definitivamente esquecido.

Os frades deram início aos trabalhos da missão. Nessa ocasião, Frei Cipriano, olhando para a cruz iluminada pelas chamas, falou para todos com voz forte:

-EM NOME DE DEUS, EU VOS ORDENO QUE ESTE LUGAR, DE HOJE EM DIANTE, SEJA CHAMADO DE NOVA-CRUZ!

O povo irrompeu em gritos de aplausos:

-NOVA-CRUZ! NOVA-CRUZ! NOVA-CRUZ!

E assim a terra da Anta Esfolada encontrava o seu nome definitivo. Ao final, Frei Cipriano mandou que todos fossem para seus alojamentos e voltassem de madrugada para a Missa de Ano Novo que ele celebraria antes de viajar.

A Lei 609, de 12 de março de 1868, elevou a povoação de Nova-Cruz à categoria de Vila, mediante a transferência para lá, da sede municipal e paroquial de Serra de São Bento. A partir de então, Nova-Cruz passou a ser Sede de Paróquia, se desligando definitivamente de São Bento.
Dessa forma, Nova-Cruz passou a ser município legalmente constituído e sede paroquial, de direito, uma vez que, de fato, já o era desde 1855. O Padre João Alípio da Cunha, que era deputado da Assembleia Provincial, foi nomeado o primeiro vigário de Nova Cruz. Ficou muito feliz com a nomeação e preparou uma grande festa para a instalação da paróquia. Convidou o Frei Cipriano para presidir os festejos, o que atraiu grande número de pessoas, de todos os povoados da redondeza.
Os índios e os negros das comunidades de Baía da Traição e de Sibaúma, vieram para a festa e assim demonstraram seu contentamento com o progresso do povoado. Houve uma grande festa, para a instalação da paróquia.

Em 1871 foi criada a comarca de Nova-Cruz, com a nomeação do Dr. Jerônimo Américo Raposo da Câmara como o primeiro Juiz de Direito. No mesmo ano, também foi criada a comarca de Canguaretama, para onde tinha sido transferida a comarca de Vila Flor. Por esse tempo, foi promulgada a Lei do Ventre Livre, que teve pequena repercussão em Nova-Cruz, dado o fato de que lá, praticamente, já tinha sido abolida a escravidão, pela alforria que dois fazendeiros ricos haviam concedido aos seus escravos.

Muitas famílias vieram morar em Nova-Cruz, atraídas pela feira, que todas as segundas-feiras reunia gente de toda a região, proporcionando grande movimento comercial.

Em 1872, quando o Padre Emídio Fernandes de Oliveira assumiu o cargo de vigário de Nova-Cruz, a vila participou do primeiro recenseamento feito no Brasil, ao mesmo tempo em que a população foi atingida pela epidemia de varíola, o que obrigava os contaminados a ficarem em regime de reclusão pelos matos, enrolados em folhas de bananeiras, para minorar o ardor das bexigas purulentas.

O casal de velhos, Severino e Iraci, fundadores de Nova-Cruz, foi atingido pela peste de varíola.

Envoltos em folhas de bananeira, foram levados para uma antiga cabana junto do pé de barriguda. Ali não resistiram e morreram.

Foram enterrados no mesmo lugar.

Com o tempo, o pé de barriguda ficou sendo a referência para as romarias dos negros de Sibaúma e dos índios de Baía da Traição.

 

 

 

 

Violante Pimentel – Escritora

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