ANTIGO AMOR DE CARNAVAL –

 

“Mas que direito, que nada!”, gritei para mim mesmo, já à noitinha, quando resolvi escrever esta crônica. Já era quase carnaval e não deveria perder meu tempo com assunto tão enfadonho. Nesses momentos, melhor é seguir a sábia lição de Ascenso Ferreira: hora de vadiar, vadiar; hora de “trabalhar”, se já é quase carnaval, “pernas pro ar, que ninguém é de ferro!”.
“Está decidido”, confabulei, “vou escrever sobre o carnaval”. É assunto suave, lúdico e interessa a todos. Quem não tem um carnaval guardado na memória? Ou mesmo, ainda folião, não sonha com outros carnavais? E, nos dias de hoje, pelo que leio nos jornais da terrinha, o carnaval já é assunto de segurança municipal e, quem sabe, ano de eleição, não virará tema de segurança nacional ou até multinacional. “Poderei eu dar à minha crônica qualquer viés, tratando ou não das relevantíssimas questões jurídico-momescas, a depender do que me der na telha”, sussurrei para mim mesmo.
“Mas qual seria esse viés?”, ainda matutava. Foi aí que o “destino” pregou uma peça e dirigiu, sem eu querer, a tônica desta crônica. O fato é que, antes de traçar estas primeiras linhas, divagando, danei-me a assistir, via youtube, a uns vídeos de poemas declamados. De declamação em declamação, eis que esbarro com “Meus oito anos”, com Casimiro de Abreu “à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais”.
O “destino”, assim, fez-me um saudosista. É verdade que um cronista saudoso é sempre um perigo. Às vezes, se revela uma figura triste e, não fosse carnaval, poderia eu ter escrito uma dolorosa crônica nessa noite. Mas não foi o caso. Recordei, sim, com imenso deleite, meus primeiros carnavais. Tempos ditosos dos carnavais da velha Redinha, onde todos se conheciam e que, se é verdade, “os anos não trazem mais”, nem por isso deixaram de ser tempos ditosos, cujas lembranças eu carrego ainda guardadas na algibeira.
Daqueles carnavais, não vou esquecer um em particular. O ano, passadas tantas folias, já não sei precisar. Suas muitas personagens, seus pierrôs e suas colombinas, seus rostos e seus cheiros, prefiro não nominar, uma vez já experimentados e misturados tantos perfumes. Mas isso não importa. Na verdade, daquele carnaval importa um único cheiro, que jamais esqueci. Meu amor de carnaval, ela tinha os olhos de um azul tão calmo e tão tempestuoso como o azul do mar. Aquela criatura, adorei-a, extasiado, como santa e pecadora (mas que amor carnal não é santo e pecador?). Para mim, ainda e já não mais menino, ela foi, ao mesmo tempo, a calmaria e a tempestade do meu carnaval.
Em momentos de calmaria, dávamos as mãos e íamos, sem rumo, só os dois. Aquele seu olhar já preenchia meu coração. Corremos pela praia e tomamos banho de mar. Construímos nossos castelos (de areia). E rimos de modo tão natural, que se ouvia de longe. Ali, éramos, sobretudo, crianças felizes. Na tempestade da folia (e dela), bebemos, brigamos e amamos. Brindamos à alegria e à juventude pelas ruas daquela outra Redinha, nas marchas e contramarchas da sua banda e do nosso bloco, do querido Pé-do-Gavião às dunas do Portal. E à noite, já cansada, ela sempre adormecia em meus braços.
Mas ao passar a tempestade de folia, eis que veio uma diferente calmaria. E ela me disse, ao fim dos quatro dias, em tom de despedida, com uma calma que me marcou mais que qualquer de suas “tempestades”: “Nos encontraremos sempre na Redinha, no carnaval, se o carnaval daqui prometer ser bom. Eu juro”. O carnaval da Redinha nunca mais prometeu nem foi bom. Mesmo assim, ainda voltei ali em algumas folias para, perdido e sabendo que já não seríamos mais os mesmos, procurar em vão pelo perfume do meu amor de carnaval.
Como já disse, um cronista saudoso é sempre um perigo. Se não se mostra inteiramente triste, ele guarda um quê de ranzinzisse e tem sempre algo para reclamar, como outrora o fez o outro Drummond, na busca por sua eterna e tempestuosa Hilda. Esse é o meu caso, acredito, justificadamente.
E assim exijo, pelo amor de Deus e do Diabo, dos foliões e folionas, autoridades municipais, estaduais, nacionais e até multinacionais: revitalizem o carnaval da Redinha. Se não por outro motivo, pelo menos para que eu possa, egoisticamente, reencontrar o meu amor de carnaval.  
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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