“Eles estavam no programa como uma missão de vida, se orgulhavam muito do que faziam”.

Assim relembra o advogado José de Oliveira, irmão de Rodolfo Donizetti de Oliveira, técnico em mecânica e uma das vítimas do maior acidente da história do Programa Espacial Brasileiro, na Base de Alcântara, no norte do Maranhão, que completa 20 anos nesta terça-feira (22).

No dia 22 de agosto de 2003, o foguete Veículo Lançador de Satélites (VLS), que levaria para o espaço o primeiro satélite de fabricação nacional e seria lançado três dias depois, passava por ajustes finais da Torre Móvel de Integração (TMI) quando uma ignição prematura de um dos motores, às 13h26, resultou na explosão do protótipo de 21 metros de altura.

Na explosão, 21 profissionais civis que estavam trabalhando no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), morreram na hora. Todos eles eram do Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial (CTA), com base localizada na cidade de São José dos Campos (SP).

A causa apontada pelo relatório final de investigação, concluído pelo Comando da Aeronáutica em fevereiro de 2004, foi um “acionamento intempestivo” provocado por uma pequena peça que ligava o motor.

União das famílias

Poucos dias após a tragédia, antes mesmo do velório ou de saber se os parentes haviam morrido, os familiares dos trabalhadores precisaram se unir para ajudar na identificação dos corpos. As equipes estavam com dificuldades para conseguir identificar os mortos e cada detalhe informado pelas famílias foi fundamental para dar rosto às vítimas.

“A gente precisou se unir logo após o acidente, isso foi muito necessário porque como foi longe daqui e todas as famílias eram daqui, tinha que ter o reconhecimento dos corpos através de outros meios como arcadas dentárias”, contou Doris Cezarini, viúva de Antônio Sérgio Cezarini, engenheiro que tinha 47 anos e fazia a função de cinegrafista na missão.

“Viúvas, famílias, irmãos, tudo para a gente poder ajudar já que não tinha um protocolo de registros. Precisamos ir buscando entre as famílias se o parente tinha obturação no dente, uma marca de cirurgia, para identificar os corpos. Nos juntamos para pegar essa informações e passar ao IML de lá”, lembrou.

O velório coletivo foi realizado na cidade de São José dos Campos no dia 27 de agosto daquele ano e contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Sila (PT), que solicitou aos familiares uma associação de familiares das vítimas.

“Naquele dia, quando cheguei ao caixão do meu irmão passei mal, desmaiei, foi bem difícil. Fui chamado pelo presidente e o próprio me disse: ‘eu sei que vocês terão várias questões para discutir com o governo e sei que os problemas não são iguais. Para que não fique um atendimento mal feito, eu proponho que vocês façam uma associação que representem as famílias e com ela venham ao governo e tratem as questões que cada família precisa'”, relembrou José Oliveira.

“Coloquei a ideia na cabeça e as famílias me delegaram a tarefa de elaborar a associação. Eu fui nomeado presidente, por ser um dos familiares e também pela minha formação. O governo se comprometeu a conceder bolsa educação, assistência psicológica, indenização”, contou.

Uma das pessoas que apoiou a criação da associação foi a Doris, que ficou viúva de Antônio. “Entendemos que precisávamos unir, ter um porta-voz, auxílio, todos precisavam de tratamento psicológico”, disse Doris.

Luto coletivo

Desde então, foi criada a Associação dos Familiares das Vítimas do Acidente do VLS (ASFAVV). Oliveira relembra que quase nenhuma família queria receber a indenização, alegando que dinheiro nenhum traria as vítimas de volta. Foi necessário um trabalho de dez dias de convencimento para que as pessoas aceitassem, pois era uma determinação do governo.

“Na época, R$ 100 mil brilhavam mais os olhos do que hoje, mas houve quase unanimidade. Duas famílias falaram que o valor era baixo. Não houve cláusula para ser assinada e abrir mão de ganhos futuros. As famílias ficaram à vontade para quem quisesse, buscar um valor maior. Só duas famílias, pelo que lembro, não entraram na Justiça depois”, afirmou.

“Fui um entusiasta disso, ajudava a motivar as pessoas a irem atrás de um valor mais justo”, contou Oliveira, que foi à Alcântara seis vezes após o ocorrido para participar das investigações.

“É difícil falar o que é justo e o que não é. Valores de vida, 20 anos depois, a gente teve que reconstruir nossa vida, criar filhos sem a presença do pai. A maioria das famílias, o presidente prometeu na época o valor da indenização e um auxílio para crianças se formarem até os 24 anos”, disse Doris.

Além da parte burocrática, a união das famílias foi necessária para questões psicológicas. Entre eles, tentaram encontrar apoio, compartilhar as dores e encontrar um caminho para amenizar a situação com o passar do tempo.

“Nos primeiros cinco anos, aproximadamente, a gente fazia uma assembleia ordinária das famílias uma vez por mês, como também fazíamos visitar domiciliares. Fazíamos encontros, como por exemplo na pizzaria da Doris. Nos primeiros dois anos, todas as noites de sextas-feiras nos reuníamos e conversávamos sobre o que cada um estava enfrentando”,, relembra o advogado.

“Tinha gente que falava que o filho estava com problema, as pessoas falavam dos desafios. Eu, por exemplo, falava da minha mãe e do meu pai que não aceitavam a morte do filho caçula. Chegamos a ir juntos em centros espíritas de São Paulo, nos reuníamos em outros lugares também”, completou Oliveira, que relatou também que o último encontro das famílias foi em 2018 e que apenas quatro participaram.

Missão de vida

Rodolfo Donizetti de Oliveira tinha 35 anos quando morreu no acidente. Natural de Paraibuna (SP), ele iniciou os trabalhos no CTA aos 14 anos como jovem-aprendiz e aos 17 foi transferido ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O profissional tinha sido integrado à equipe do VLS e fez parte das duas primeiras tentativas de lançamento. Ele estava desde janeiro participando da Operação São Luís.

O irmão de Rodolfo conta que ele e os demais companheiros haviam constituído uma espécie de família, pois passavam grande parte do tempo juntos, dividiam alojamento e tinham um objetivo comum: o sucesso do VLS.

“Eles se reuniam às sextas-feiras após o expediente e trocavam ideias em relação ao programa. Eu estive presente em algumas dessas reuniões, pude conhecer vários deles e a percepção das pessoas de fora, inclusive a minha, era de que eles estavam no programa como uma missão de vida. Eles levavam não como uma missão espacial, mas sim de vida, se orgulhavam muito do que faziam”, relatou Oliveira.

José disse que o irmão levava com muita seriedade a profissão e lembra com emoção a empolgação que Rodolfo tinha ao falar que o Brasil seria referência em tecnologia para o mundo após a operação.

Ele teve seu último contato com o irmão caçula cerca de 15 dias antes da tragédia e lembra que a notícia chegou pela televisão. Foram horas de angústia até a confirmação do falecimento.

“Depois de recebermos a notícia fomos até a casa da minha cunhada para informar e a reação dela foi surpreendente. Ela disse: ‘eu sabia que o Rodolfo tinha ido, pois aquilo era como um filho para ele'”, contou Oliveira.

Amor pela profissão

Antônio Sérgio Cezarini era engenheiro e morreu aos 47 anos na tragédia de Alcântara. Ele nasceu em Guaratinguetá (SP), era casado com Doris Cezarini e trabalhava no CTA desde 1983. A esposa dele também passou por dias angustiantes até saber do falecimento do companheiro.

“Ele passou o Dia dos Pais em casa e foi para lá cerca de cinco dias antes do acidente. No dia foi muito complicado, porque foi algo inesperado. Na hora que aconteceu o acidente, todos estavam lá no Maranhão, então não tinha muito controle de quais pessoas estavam na base e a confirmação de quem tinha morrido foi muito demorada. Para nós foi angustiante, só confirmaram para nós, com segurança, quase três dias depois que ele tinha morrido”, narrou.

Apesar de engenheiro, Antônio havia se interessado pela área da cinegrafia. Na missão, ele comandava uma equipe de captação de imagens, para análises e para registrar cada passo do projeto. A viúva dele lembra que descobriu sobre a tragédia por vizinhos que acompanharam o caso pela televisão.

“As minhas irmãs tinham visto na televisão. Eu não vi, foi 13h26, estava trabalhando. Cheguei em casa por volta das 17h e aí um vizinho me falou. A partir daquele momento tentei ligar para ele, mas não conseguia. Ninguém do CTA conseguia dar informação, porque nem eles sabiam. Foi muito complicado”, relembra a viúva.

Doris relembra com carinho o empenho que o marido tinha e o seu desejo de escrever história com o lançamento do VLS.

“Ele era uma pessoa autodidata, se envolvia em tudo o que desse para ele. Se entregasse um vídeo cassete quebrado para ele, que era o que tinha na época, ele conseguia transformar em dois. Adorava esse tipo de coisa. Ele não começou trabalhando nessa área, acabou se envolvendo através do meu pai que era militar. A parte dele chegar na captação de imagem foi o interesse dele. Ele amava o que fazia, estar envolvido nisso, ele torcia e vibrava por cada conquista do projeto, assim como todos os outros, apaixonados pelo projeto”, concluiu.

Monumento após 20 anos

No dia em que o acidente completa 20 anos, a Prefeitura de São José dos Campos e o DCTA (Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial) irão entregar um monumento em homenagem às vítimas que estavam no Centro de Lançamento de Alcântara.

Segundo a prefeitura, o monumento foi feito em alvenaria e terá seis metros de diâmetro. Ele terá placas das instituições e os nomes dos heróis.

Ao lado do marco, será instalado um protótipo de foguete lançador de satélite, em referência ao evento. A solenidade de inauguração contará com a entrega de medalhas honoríficas aos familiares das vítimas do acidente.

Fonte: G1

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *