APROXIMAÇÕES E DIFERENÇAS I –
No artigo da semana passada, eu afirmei que, embora a literatura e o direito trabalhem em universos ou condições distintas, eles têm alguns – quiçá muitos – pontos de convergência. Hoje vou desenvolver um pouco mais a temática, tratando, sucessivamente, dessas aproximações e diferenças.
Antes de mais nada, um elemento fundamental une a literatura e o direito: a onipresença da linguagem, como principal instrumento para que elas atinjam os seus fins. Se como bem notado por André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008), citando Francois Ost (1952-), a ninguém é dado ignorar a lei (embora alguns espertinhos tentem fazer isso constantemente), também a ninguém é dado, no direito, ignorar a linguagem. Ela é a instância que funda, através da palavra e do texto, todo e qualquer discurso, incluindo o jurídico e o literário.
E se tanto o direito como a literatura estão intimamente relacionados à linguagem – já que trabalham fundamentalmente com a palavra, o texto, o discurso e a narração –, é importante também que se diga que essa linguagem, no direito, assim como se dá na literatura ficcional, até preexiste à realidade (a realidade jurídica, seja ela qual for), uma vez que, sobretudo na elaboração da norma abstrata, mas também na narração de um fato jurídico, a palavra ou texto imaginado antecede as suas consequências jurídicas em si.
Ademais, como mais um ponto de intersecção, esse papel central atribuído à linguagem e à palavra vincula inexoravelmente o direito e a literatura (e seus juristas e literatos, respectivamente) à atividade/arte da interpretação, que sempre será necessária para se descobrir o alcance e o sentido daquilo que foi posto no texto, seja literário ou jurídico. Com base nos princípios da hermenêutica (a teoria ou ciência da interpretação), juristas e literatos fazem uso dessa arte, dotada de uma técnica e de métodos, voltada para um fim, que é, no caso dos juristas, determinar o significado da linguagem utilizada pelo direito.
Em terceiro lugar, tanto a literatura como o direito, embora de formas e com finalidades diversas, lidam com relações entre os seres humanos, assim como entre estes e os demais animais e coisas, pressupondo um aprimorado conhecimento da condição humana, da natureza e da vida. Conforme lembrado por André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert, desta vez citando Arthur Kaufmann (1872-1938), “o direito não é um objeto como as árvores e as casas. O direito é, pelo contrário, a estrutura das relações nas quais os homens estão uns perante os outros e perante as coisas”. E prosseguem os referidos autores, agora com as suas próprias palavras: “a literatura igualmente se encontra ligada a esta mesma ontologia das relações de que fala Kaufmann, visto que as relações humanas também constituem seu objeto central, embora privilegiando sua natureza estética. Como toda e qualquer expressão artística, a literatura é uma transfiguração do real, isto é, a realidade recriada e retransmitida pela narrativa, através de metáforas e metonímias. Assim, do mesmo modo como ocorre com o discurso jurídico – que pretende dar conta da realidade –, a narrativa, por mais ficcional que seja, é produzida inevitavelmente a partir daquilo que lhe é fornecido pelo mundo da vida”.
Isso tudo não significa, entretanto, que inexistam diferenças importantes entre as disciplinas jurídica e literária. Elas existem – e mais uma vez eu as reconheço –, embora tais diferenças não tenham o condão de colocar em xeque a utilidade do que fazemos aqui e agora, estudando, tudo junto e (quase) misturado, o direito e a literatura. E sobre algumas dessas diferenças, nós conversaremos na semana que vem. Eu prometo.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP