Jovens da região do Xitei, na Terra Yanomami, com armas de fogo — Foto: Reprodução/Condisi-YY
Jovens da região do Xitei, na Terra Yanomami, com armas de fogo — Foto: Reprodução/Condisi-YY

Meninas e mulheres indígenas exploradas sexualmente em troca de comida e comunidades entrando em conflito armado entre si. As duas situações foram registradas no mesmo local: a Terra Indígena Yanomami (TIY). Mas, essa não é a única coincidência. Ambas foram provocadas pela exploração ilegal e indiscriminada de minérios dentro da reserva.

A região é explorada por garimpeiros há anos, que buscam minérios como ouro e cassiterita, usada na fabricação do estanho. Estima-se que cerca de 20 mil invasores estejam infiltrados no território. Apesar de proibida em reservas indígenas, atualmente, o Congresso tenta liberar não só a mineração, como a exploração de hidrocarbonetos e geração de energia elétrica.

Nesta reportagem, o portal g1 explica em três pontos como os problemas provocados pelo garimpo estimulam o recrutamento de indígenas para o trabalho na mineração ilegal.

Destruição ambiental
Desestruturação social dos Yanomami
Desequilíbrio da saúde indígena

Segundo lideranças Yanomami, com o avanço do garimpo e devastação ambiental, homens – na maioria jovens e adolescentes – são recrutados para o trabalho na mineração ilegal em troca de cachaça e principalmente de armas de fogo.

O g1 teve acesso com exclusividade a fotos de rapazes Yanomami carregando armas de fogo. Segundo o Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), as imagens são da região do Xitei, onde há forte presença do garimpo. Parte dos garotos têm por volta de 13 anos de idade.

A entrada de armas na reserva, porém, é uma realidade já conhecida das forças de segurança. Em fevereiro deste ano, a Polícia Federal prendeu o dono de uma fábrica ilegal de arma de fogo durante uma operação contra o tráfico de armas para abastecer garimpos na Terra Yanomami.

Na fábrica clandestina, foram apreendidos cinco armas de fogo, tambores para revólveres e diversos materiais para fabricação de armas, incluindo mais de 30 coronhas para espingardas.

A situação é acompanhada pelo Ministério Público Federal (MPF), que pediu ao governo federal novas ações policiais na reserva. O g1 procurou o Ministério da Justiça, que comanda as operações na floresta, para saber o que está sendo feito e aguarda retorno.

O documento “Yanomami Sob Ataque”, divulgado pela Associação Hutukara (HAY) no último dia 11, relata que na região do Aracaçá, o subgrupo ianomâmi Sanöma deixou de abrir roças e hoje depende da alimentação oferecida pelos garimpeiros em troca de serviços, como carregar combustível e realizar pequenos fretes de canoa. A introdução de drogas e bebidas alcoólicas pelo garimpo, também provocou o aumento da violência entre os indígenas da região.

“Cria-se uma situação de insegurança alimentar. Muitas pessoas acabam atraídas por essas facilidades oferecidas pelo garimpo e acabam se desinteressando pelo trabalho da roça, que é desgastante. O garimpeiro seduz falando, ‘vem cá, vem trabalhar comigo, deixa eu permanecer no território, que eu vou te dar alimento fácil'”, explica Paulo Cesar Basta, médico e pesquisador em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que atua com pesquisas na TIY desde 1999.

1. Destruição ambiental

A reserva Yanomami é a maior do país, com cerca de 10 milhões de hectares distribuídos entre os estados de Roraima, onde fica a maior parte, e Amazonas. São mais de 28,1 mil indígenas que vivem na região, incluindo os isolados, em 371 comunidade.

O primeiro ataque dos garimpeiros ocorre contra a natureza. A derrubada de árvores e o desvio de rios iniciam a invasão para a exploração de minério na reserva. De acordo com o pesquisador Paulo Basta, as duas práticas são o pontapé inicial da cadeia de situações prejudiciais à saúde Yanomami.

Além dos danos na flora, a derrubada de árvores afugenta os animais afetando a fauna e, com isso, a caça e a pesca dos Yanomami, pois afasta as principais espécies como anta, paca e veado — fonte de proteínas para os indígenas — contribuindo para a desnutrição.

O relatório da Hutukara aponta que de outubro de 2018 até o fim de 2021, a área destruída pelo garimpo ilegal quase dobrou de tamanho, ultrapassando 3,2 mil hectares. Apenas nos três primeiros meses de 2021, a degradação foi equivalente a 200 campos de futebol. Ao todo, se comparado a 2020, o ano passado registrou um aumento de 46%.

O garimpo está cada vez mais perto das comunidades. Um exemplo, é a imagem de uma cratera a céu aberto, ameaçando a estrutura da Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI), em Homoxi (veja acima). O local, inclusive, precisou ser desativado devido a insegurança. Além deste, outros 18, dos 37 polos de saúde existentes na Terra Indígena, possuem registro de desmatamento relacionado ao garimpo.

“Esse procedimento da chegada dos garimpeiros até a devastação dos territórios, já promove uma devastação geral na cobertura vegetal e isso causa desequilíbrio ao ecossistema local, afetando a disponibilidade de alimentos e causando uma escassez”, explica Basta.

Outro grave problema ambiental é o uso de mercúrio para extração de ouro. A substância contamina os rios, matando animais e impactando a disponibilidade de alimentos, gerando graves danos ambientais e problemas neurológicos nas pessoas.

Basta, que coordenou o projeto “Avaliação da exposição ambiental ao mercúrio proveniente de atividade garimpeira de ouro em Terras Indígenas de Roraima, Amazônia, Brasil”, por meio da Fiocruz, explica que a cada quilo de ouro encontrado na floresta, estima-se que sejam usados até 3 quilos de mercúrio. Logo, a substância que não “grudou no ouro”, é liberada no meio ambiente sem qualquer tipo de cuidado ou tratamento.

“Essa substancia que cai, desce até o fundo do rio. Quando chega, passa por um processo de transformação feito pelos microorganismos que vivem no fundo do rio e se transforma em uma forma orgânica chamada metil-mercúrio. A forma mais tóxica do mercúrio”, detalha o pesquisador.

2. Desestruturação social

A aproximação dos garimpeiros com os homens jovens, conforme Paulo Basta, inicia com a promessa de “enriquecimento fácil, ganhar ouro e ter acesso a bens e mercadorias que não existem na floresta”. Por isso, os indígenas passam a trabalhar na mineração ilegal — muitas vezes de formas análogas à escravidão. Essa retirada deles das comunidades provoca a desestruturação social dos Yanomami.

O pesquisador explica que a estrutura social dos Yanomami, do ponto de vista tradicional, tem funções divididas por gêneros: mulheres plantam e colhem os frutas e legumes, enquanto os homens abrem clareiras para as roças, caçam, pescam e também fazem a segurança da família.

Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Condisi-YY, afirma que o recrutamento de jovens está “destruindo a alimentação dos indígenas”, já que com o trabalho no garimpo, eles não têm mais tempo para cuidar da comunidade e abrir as plantações. Por conta disso, a dieta deles agora é formada por produtos industrializados, como sardinhas enlatadas.

Hekurari também estima que as comunidades assediadas pelo garimpo devem possuir de 50 à 80 armas de fogo. Associado ao consumo de cachaça, ele afirma que o uso das armas de fogo dá aos jovens sentimento de força e poder, o que gera violência na própria comunidade e conflito entre os indígenas, como o ocorrido entre moradores de Pixanehabi e Tirei, na região de Xitei.

Para o vice-presidente da Hutukara, Dário Kopenawa, a entrega de armas e cachaça aos indígenas é um “plano do garimpo” para provocar conflitos internos.

Kopenawa destaca também que a segurança das mulheres e meninas é afetada com a ausência dos homens na comunidade. Com a presença de garimpeiros e a oferta de cachaça, elas se tornam alvos de abusos sexuais.

“Aonde tem garimpo por perto, não tem como as mulheres e as meninas andarem, mesmo a comunidade delas sendo muito próximo de garimpos ilegais. Os garimpeiros oferecem cachaça e resto de comida, aliciando as mulheres. Essa é a realidade. Quando os garimpeiros dão cachaça, e a mulher está bêbada e caída, eles se aproveitam e elas são estupradas”, afirma Kopenawa.

Assim como a atuação do garimpo na Terra Yanomami, os relatos de estupros e submissão de jovens indígenas ao trabalho escravo, não são uma novidade. Em 2014, por exemplo, casos como esses, já foram denunciados ao poder público.

3. Desequilíbrio da saúde

As diversas crateras e o curso dos rios desviados, criam condições propícias para a reprodução de mosquitos transmissores de doenças, como a malária. Doentes, os adultos ficam impossibilitados de buscar comida para a família ou cultivar plantações, o que impacta a dieta das crianças e impulsiona a desnutrição infantil.

Um estudo do Unicef (braço da Organização das Nações Unidas para a infância) e a Fiocruz aponta que oito em cada dez crianças menores de 5 anos têm desnutrição crônica – nas regiões de Auaris e Maturacá – dentro da Terra Yanomami.

Em novembro do ano passado, reportagem do Fantástico (TV Globo) e o g1 (assista abaixo) mostrou a grave situação da saúde na Terra Yanomami. Em uma das comunidades, a Xaruna, a equipe encontrou uma das piores situações dentro da reserva indígena, com dezenas de crianças desnutridas e com sintomas de malária.

A malária é uma doença endêmica da Amazônia e se espalha rapidamente nas comunidades. Logo, de acordo com Paulo Basta, é comum que as pessoas sejam diagnosticadas mais de uma vez.

Somente em 2020, primeiro ano da pandemia, foram registrados 45.811 casos de malária na Terra Yanomami, segundo dados do Ministério da Saúde e Hutukara. O número representa 33% dos casos registrados em todas as reservas indígenas do país.

A forma grave da malária, provocada pelo plasmódio falciparum, também foi introduzida na Terra Yanomami, conforme o pesquisador Paulo Basta. Ele acrescenta que, se não for tratada adequadamente, esta variação da doença pode levar à morte.

Somente entre os meses de setembro e novembro de 2021, quatro crianças de Xaruna morreram com sintomas graves da malária e sem atendimento. Uma delas tinha apenas seis meses de idade.

Já em dia 4 de novembro, uma adolescente indígena, de 17 anos, morreu na comunidade Yaritopi, com sintomas de malária falciparum. Em 1º de outubro, um pajé da comunidade Makuxi Yano, de 50 anos, também morreu sem atendimento.

Com o isolamento geográfico e a dificuldade de comunicação com as autoridades ou socorro, indígenas recorrem aos invasores, que possuem acesso a internet e telefonia, quando precisam de atendimento médico e não encontram.

A estrutura dos garimpos dentro da floresta pode ser comparada a uma “mini-cidade”, algo totalmente diferente da realidade das comunidades.

Operações da Polícia Federal já encontraram muito mais que telefones e roteadores de Wi-fi. Em alguns acampamentos, havia boates, bingos, restaurantes e até um consultório odontológico.

 

 

 

 

Fonte: G1

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