A RECLAMAÇÃO NO NCPC –
Já escrevi, em outras eras, sobre a “reclamação”. Tenho voltado ao tema nesta série de artigos sobre os precedentes no NCPC, uma vez que o regramento da reclamação, como verdadeira ação, acha-se pela primeira vez previsto em um dos nossos códigos de processo civil, como importantíssimo instrumento para garantir, entre outras coisas, a obediência aos precedentes vinculantes (vide arts. 988 a 993 do NCPC).
Para quem não sabe, a reclamação, como ensina o nosso conterrâneo Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, na mais importante obra sobre o assunto escrita em nosso país – “Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro” (editora Fabris) –, foi, em princípio, “fruto de construção pretoriana do Supremo Tribunal, a partir de meados deste século [século XX], com base, principalmente, na teoria dos poderes implícitos, do direito americano, e que, posteriormente, foi introduzida no Regimento Interno dessa corte, e, passando por outras etapas, findou acolhida na vigente constituição, tanto para o STF como para o STJ, para preservar-lhes a competência e a autoridade de suas decisões”.
Agora, segundo o NCPC, art. 988, caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: I – preservar a competência do tribunal; II – garantir a autoridade das decisões do tribunal; III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade (redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016); e IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência (redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016). Como se pode notar, com exceção do inciso I, os outros três incisos que definem o cabimento da reclamação estão relacionados à necessidade de seguimento de decisões vinculantes. Registre-se, ademais, que o § 4º do art. 988, é claro ao consignar que “as hipóteses dos incisos III e IV compreendem a aplicação indevida da tese jurídica e sua não aplicação aos casos que a ela correspondam”.
Em termos práticos, os órgãos judicantes (e o Poder Executivo em muitos casos) nas situações em que a mesma questão esteja envolvida, devem, obrigatoriamente, aplicar a decisão tida como vinculante. Se não o fizerem, “abrem as portas” para uma reclamação, conforme previsto na Constituição Federal e no NCPC, arts. 988 a 993, além dos recursos cabíveis às instâncias regulares. Ou seja, se não for respeitada a decisão vinculante, o prejudicado poderá valer-se, antes do trânsito em julgado da decisão reclamada (art. 988, § 5º), de um importantíssimo mecanismo processual (que, para mim, tem natureza jurídica de ação), denominado reclamação, requerendo diretamente ao tribunal emitente da decisão vinculante que garanta a autoridade de sua decisão, com possibilidade de concessão de provimento liminar, inclusive.
Aliás, no que diz respeito à competência, o NCPC é explícito ao afirmar que, sendo cabível perante qualquer tribunal – e isso é uma inovação no sistema muitíssimo importante –, o “seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou cuja autoridade se pretenda garantir” (art. 988, § 1º). Devidamente instruída com prova documental (§ 2º), a reclamação deverá ser autuada e distribuída ao relator do processo principal, sempre que possível (§ 3º).
O procedimento propriamente dito da reclamação também é disciplinado pelo NCPC. Em linhas gerais, à luz do art. 989 do NCPC, é possível a suspensão liminar do processo ou do ato impugnado para evitar dano irreparável (inciso II). Serão requisitadas informações da autoridade a quem for imputada a prática do ato impugnado e determinada a citação do beneficiário da decisão impugnada, para resposta nos prazos legais ali previstos. Qualquer interessado, segundo o art. 990 do NCPC, poderá impugnar o pedido do reclamante. Ademais, na reclamação que não houver formulado, terá o Ministério Público, ao final, vista do processo por cinco dias.
Como fecho, dispõe o art. 992 do NCPC que, “julgando procedente a reclamação, o tribunal cassará a decisão exorbitante de seu julgado ou determinará medida adequada à solução da controvérsia”. E ainda dispõe o artigo seguinte (art. 993): “o presidente do tribunal determinará o imediato cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente”. Tomando como exemplo uma decisão reclamada que ofenda a Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, se o STF julgar procedente a reclamação, isso implicará a anulação ou cassação da decisão judicial contrária à Súmula Vinculante. Exige-se do órgão descumpridor, no caso concreto, conduta em conformidade com o entendimento sumulado – a aplicação adequada ou a não aplicação do enunciado vinculante, dependendo do caso específico – podendo o STF valer-se de todos os meios necessários para alcançar esse fim.
Por fim, acredito que a possibilidade de manejar diretamente uma reclamação é a consequência prático-jurídica mais palpável de se atribuir a uma decisão caráter vinculante. De toda sorte, é de se esperar que as decisões vinculantes relacionadas no NCPC sejam culturalmente aceitas e voluntariamente cumpridas por todos os órgãos judicantes. Caso contrário, haverá um sem-número de reclamações, tornando o processamento delas moroso e a celeridade buscada com a vinculatividade das decisões mais uma de nossas promessas malogradas.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP