SEPARAÇÃO E CONTROLE (I) – 

Hoje eu vou dar uma escapulida da minha série de pequenos perfis de grandes juristas de outrora para tratar de um tema sobre o qual – por ex-alunos queridos, mas bastante assustados (vai ver é essa onda de pânico online que vem arregalando os olhos de muita gente bacana da terrinha) – fui questionado esses dias: a compatibilização entre o princípio/teoria da separação dos poderes e o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis.

Na ocasião, tratei logo de acalmar os mais agitados, afirmando: “Antes de mais nada, aparentemente contraditórias, as ideias de separação dos poderes e de controle jurisdicional de constitucionalidade da legislação (e dos atos administrativos em geral) são, nos dias de hoje, fundamentais para qualquer estado democrático de direito”.

E continuei, procurando não parecer muito sério, afirmando mais ou menos o que segue.

Pressentida por Aristóteles (384-322a.C.), intuitivamente defendida em Roma por Cícero (106-43 a.C.), esboçada na China, no século VII, pela dinastia Tang, esquematizada por São Tomás de Aquino (1225-1274), a teoria da separação dos poderes ganhou com Montesquieu (1689-1755), em “De l’esprit des lois” (1748), sua roupagem clássica, que acabou chegando, entendida como receita de liberdade e peça fundamental para o poder político atuar corretamente, aos nossos dias. É verdade que a formulação (talvez fosse mais preciso dizer: “a divulgação”) da teoria da separação de poderes feita por Montesquieu em “De l’esprit des lois” não tinha a sofisticação – ou, melhor dizendo, a abrangência – que se costumou posteriormente atribuir-lhe. Mas o fato é que Montesquieu desenvolveu/propagou, com grande repercussão uma importante faceta do constitucionalismo moderno: a distribuição da autoridade, pressuposto fundamental para exercício democrático do poder e para a liberdade dos cidadãos, evitando o abuso no uso daquela (da autoridade) por qualquer dos poderes do Estado. E é também fato que Montesquieu influenciou profundamente o pensamento político e jurídico na França, na Inglaterra e, sobretudo, nos Estados Unidos da América, especialmente na pessoa de James Madison (1751-1836), autor de escritos fundamentais em prol da Constituição americana.

A história também registra que a Revolução Francesa, a partir da desconfiança nos juízes do Antigo Regime, tentou consagrar uma concepção extremamente rígida de separação de poderes, segundo a qual, nas palavras de Mauro Cappelletti (em “Constitucionalismo moderno e o papel do Poder Judiciário na sociedade contemporânea”, artigo publicado na Revista de Processo”), “o poder legislativo era exercido, através de seus representantes, do povo soberano” e dos juízes nada mais era esperado “senão a aplicação passiva, seca e ‘inanimada’ da lei”.

Entretanto, não foi essa concepção “revolucionária” (no sentido de pertencente à Revolução Francesa) da teoria da separação – rígida a ponto de impedir totalmente o exercício, por um dos poderes do Estado, de função, em regra, atribuída a outro Poder – que finalmente prevaleceu na história.

No que toca especificamente ao controle jurisdicional de constitucionalidade, mesmo na Inglaterra, país de Constituição não escrita, havia quem defendesse, já no século XVII, o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Edward Coke (1552-1634), por exemplo, foi um defensor da Constituição britânica mesmo em oposição às vontades do Monarca e do Parlamento. Como juiz, sua decisão no caso Thomas Bonham v. College of Physicians 8 Co. Rep. 114 (Court of Common Pleas [1610]), conhecido como “Dr. Bonham’s Case”, é famosíssima. Em síntese, ali é afirmado que o “common law” (leia-se: o direito primordial inglês), através de suas cortes, deve “controlar” os atos do Parlamento (leia-se: as leis) e, em sendo eles desarrazoados ou repugnantes (“repugnant”), declará-los nulos (“void”). Embora se discuta qual era a real intenção de Coke com essa decisão, não resta dúvida que nela está uma semente do que chamamos hoje de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis.

E se é verdade que na Inglaterra acabou prevalecendo o Princípio da Supremacia do Parlamento, imaginado (ou, ao menos, enfaticamente defendido) por William Blackstone (1723-1780) em seus “Commentaries on the Law of England” (1765-1769), a tese de Coke em “Dr. Bonham’s Case”, ironicamente, foi exportada para os Estados Unidos da América, onde ganhou os aplausos dos “Founding Fathers” da nova República, sobretudo de John Marshall (1755-1835), o mais célebre dos “Chief Justices” da “US Supreme Court”. E alguns chegam a afirmar que o “Dr. Bonham’s Case” foi a inspiração, até pela coincidência no uso das expressões “repugnant” e “void”, para a decisão de Marshall em Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803), caso no qual, segundo convencionado, está a origem do “judicial review of the constitutionality of the legislation” (que chamamos de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis – modelo difuso).

Bom, sobre o controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, para os meus assustados ex-alunos, ainda falei uma porção de coisas. Mas, por falta de espaço aqui hoje, recontarei para vocês apenas na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCLCe Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores
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