SOBRE GAIO –

Já faz algum tempo, conversamos aqui sobre Justiniano (483-565), o imperador romano-bizantino ou do “Oriente” (de 527 a 565), responsável, como a história registra, pela mais famosa e perene compilação – ou mesmo codificação – do direito romano antigo, compilação essa que depois restou conhecida como o “Corpus Iuris Civilis”.

Hoje trataremos de outro grande vulto do direito romano, o jurisconsulto Gaio, que, segundo estimam as fontes mais confiáveis, teria nascido antes do ano 120 da era cristã (pelo fim do reinado do imperador Trajano e o começo do de Adriano) e falecido por volta do ano 180 ou um pouco depois (no fim do reinado de Marco Aurélio ou no começo do de Cômodo).

Como não raro se dá com as personalidades da Grécia e da Roma de tempos remotos, pouco se sabe acerca da vida do jurisconsulto “Gaius” (esse é o seu prenome em latim, já informo, para parecer chique). Para além da incerteza acerca das datas do seu nascimento e falecimento, até mesmo seu nome completo é desconhecido. De toda sorte, tomando com base o conteúdo dos seus trabalhos conhecidos, Gaio parece ter vivido o seu período de maior produtividade durante os reinados dos imperadores Adriano (imperador de 117-138), Antonino Pio (138-161) e Marco Aurélio (161-180), perpassando boa parte do século II de nossa era.

Segundo se registra, Gaio é autor de várias obras. Citam-se, por exemplo, os comentários sobre uma tal “Lex Papia Poppaea” (que, segundo andei pesquisando, era uma lei que incentivava e protegia o casamento), os comentários à célebre “Lei das Doze Tábuas”, os comentários aos “Éditos dos Magistrados” e por aí vai. Todas essas obras estão citadas, pelo menos em fragmento, no “Digesto”, a compilação de enxertos de grandes jurisconsultos ordenada pelo já referido imperador Justiniano.

Entretanto, a fama de Gaio repousa em grande parte, sobretudo para nós do século XXI interessados na história do direito, especialmente o romano, sobre suas “Instituições” (“Institutas”, querendo ser chique de novo), o único dos seus trabalhos que nos chegou, após redescoberto em Verona (na biblioteca da Catedral) no começo do século XIX, na sua (quase) integralidade, e que continua, nos dias de hoje, a ser periodicamente editado. Para se ter uma ideia, para escrever este artigo, consultei uma edição das “Institutas” de Gaio, intitulada “Instituições – Direito Privado Romano”, publicada pela maravilhosa Fundação (portuguesa) Calouste Gulbenkian, na sua coleção de “Textos Clássicos”, em 2010 (tradução do texto latino, introdução e notas de José Antônio Segurado e Campos). E aqui vai um parêntesis com duas dicas: (i) consultem o acervo de publicações jurídicas da Fundação Calouste Gulbenkian, que é simplesmente fantástico; (ii) e, se estiverem interessados especialmente nas “Institutas” de Gaio, deem um pulo na Livraria Cultura do Paço Alfândega, no Recife, pois, pelo menos até quarta-feira passada, havia um exemplar delas lá prontinho para ser adquirido.

As “Instituições” de Gaio foram (e são ainda), acima de tudo, pelo menos até o advento da grande obra de Justiniano, o manual ou curso de direito privado – o “livro de cabeceira”, pode-se dizer – dos jovens estudantes de então. De fato, como consta na capa da referida edição das “Institutas” de Gaio, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, trata-se de “um trabalho de índole didáctica, uma introdução ao estudo do direito privado sistematicamente dividida em três partes: direito das pessoas, direito das coisas, organização processual das acções. Nota-se ainda nelas, da parte do autor, um acentuado pendor historicista: ao analisar certas instituições em vigor no seu tempo, Gaio tem a preocupação de referir a evolução das mesmas a partir de instituições mais antigas caídas em desuso, ou de comparar as vigentes em Roma com as de outros povos, ou mesmo com as empregadas nas províncias do Império Romano. Esta circunstância, juntamente com o facto de ele nunca ter desempenhado nenhum cargo oficial nem, ao que parece, ter possuído o ius respondendi (autorização imperial para emitir pareceres jurídicos) levou alguns romanistas a pensarem que Gaio teria sido sobretudo um professor de direito. As suas Instituições, de facto, ganharam grande popularidade e difusão no séc. IV nas escolas jurídicas de Constantinopla e de Beirute, o que pode ajudar a explicar que tenha sido esta obra a única, da autoria de um jurista romano, a ter chegado até nós na íntegra, salvo uma ou outra lacuna no manuscrito” (texto reproduzido no português de Portugal para parecer chique mais uma vez).

Por volta dos séculos IV e V da nossa era, o prestígio de Gaio chega ao seu apogeu, culminando com a consagração de ele ser apontado um dos cinco grandes jurisconsultos romanos cujas “opiniões”, segundo a “Lei das Citações” de 426, atribuída ao imperador romano-bizantino Teodósio II (reinado de 408-450), deveriam ser “seguidas”, como “fontes” do direito romano, pelos magistrados nos casos em julgamento. E isso sem falar no fato, também assaz relevante, de as posteriores e famosas “Instituições” de Justiniano, como registra a já referida publicação da Fundação Calouste Gulbenkian, adotarem “a mesma planificação estabelecida por Gaio, de cuja obra reproduz ‘ipsis uerbis’ numerosos passos”.

Tirando tudo isso por verdadeiro, já que é história, Gaio, além de jurisconsulto, foi (provavelmente) o nosso primeiro professor de direito. Um professor cujas lições nos inspiram até hoje.

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

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