SOBRE ULPIANO –
Escrevi recentemente aqui sobre o jurisconsulto Gaio (nascido antes do ano 120 d.C. e falecido por volta do ano 180 d.C., segundo as fontes mais confiáveis), autor, entre outras coisas, das famosas “Instituições”, obra que, como verdadeiro manual de direito privado e “livro de cabeceira” dos estudantes de então, fez dele o nosso “primeiro professor”.
Seguindo a mesma trilha, hoje trataremos de outro grande vulto do direito romano: o jurisconsulto Ulpiano, cujo nascimento teria se dado entre os anos de 150 e 170 (período que perpassa os reinados dos imperadores Antonino Pio e Marco Aurélio) e falecimento entre os anos 223 e 228 (no reinado de Alexandre Severo, seguramente), da era cristã, segundo informam as várias fontes que consultei.
Assim como se dá com Gaio, pouco se sabe com segurança sobre a vida civil de Ulpiano. É certo que ele nasceu na antiga cidade comercial de Tiro, situada na costa do que hoje é o Líbano, no seio de uma família da aristocracia (da ordem “equestre”) de então. Seu nome completo, em latim, era Eneo Domitius Ulpianus. Ele foi, segundo se registra, pupilo do famoso jurisconsulto Papiniano (142-212 d.C.). Foi rival de outro grande jurista, Paulo (que também viveu entre os séculos II e III da era cristã). Seus anos mais ativos como jurisconsulto vão de 211 a 222 d.C. Registre-se ainda que, além de jurista, Ulpiano foi historiador, demógrafo, grande economista e homem de Estado. Na política/administração romana, por exemplo, serviu sob os reinados de Sétimo Severo (como membro do Conselho deste), de Caracala (como “magister libellorum”, cargo também exercido pelo seu mestre Papiniano) e de Alexandre Severo (exercendo o importantíssimo cargo de prefeito pretoriano). Segundo a versão mais conhecida, Ulpiano foi assassinado, em Palácio, servindo ao Imperador Alexandre Severo, em meio a uma revolta envolvendo soldados e a população enfurecida.
Ulpiano é autor de muitos textos jurídicos, sempre claros e sistemáticos, que chegaram até nós, em fragmentos, sobretudo por intermédio do “Digesto” do grande imperador romano-bizantino Justiniano (483-565). Entre eles, bastante badalados são: “Ad Sabinum”, sobre o “ius civile” romano, composto de cinquenta e um livros; “Ad Edictum”, comentários sobre os éditos dos imperadores romanos de até então, composto de ao menos oitenta e um livros; “De Officio Proconsulis Libri”, uma sistematizada exposição do direito penal romano em dezenove livros; suas “Instituta”, obra dedicada ao ensino do direito; e por aí vai. No mais, muito conhecida do público em geral é a seguinte máxima de Ulpiano sobre o direito: “Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere” (“São estes os preceitos do direito: viver honestamente, não lesar o próximo e dar a cada um o que lhe pertence”).
Entretanto, mais precisamente, o grande legado de Ulpiano está no fato de ele ter sido o primeiro pesquisador e sistematizador (dizem que ele não tinha a originalidade do seu mentor, Papiniano) em uma linha sucessiva de juristas que interpretaram e organizaram as outrora erráticas provisões do direito romano, transformando este (o direito romano) no “monumento” até hoje conhecido por suas qualidades de coerência e inteligibilidade.
Como aponta Robert Hockett (em “Little Book of Big Ideas – Law”, A & C Black Publishers Ltd., 2009), “de Ulpiano em diante, o direito romano restou conhecido pelo trabalho dos seus juristas comentadores, todos eles seguindo estilo de Ulpiano. Previamente ao estilo de comentários de Ulpiano, o direito romano era algo consideravelmente disperso, na forma de diversos princípios enunciados por juízes na decisão de casos concretos e de éditos ‘ad hoc’ de vários imperadores. Ulpiano está entre os primeiros a realizar um esforço sério no sentido de extrair princípios básicos de decisões judiciais e de éditos imperiais, com os quais ele sintetizou e sistematizou um arcabouço coerente de doutrina legal. Esse esforço não só facilitou o amplo entendimento e disseminação do direito romano desenvolvido até aquele momento, mas também ajudou a futura evolução sistemática desse direito, pois sua clarificação do direito existente tornou-se a base e guia para as futuras decisões judiciais e desenvolvimentos legislativos”.
Lembremos, por fim, que o grande “sistematizador” Ulpiano, assim como Gaio (referido no começo deste riscado), foi um dos cinco grandes jurisconsultos romanos cujas “opiniões”, segundo o disposto na “Lei das Citações” de 426, do tempo do imperador romano-bizantino Teodósio II (reinado de 408-450), deveriam ser “seguidas”, como “fontes” do direito romano, pelos magistrados nos casos em julgamento. E mais: sua sistematização do direito romano fez com que Ulpiano se tornasse – e talvez a história não conheça consagração maior para um jurisconsulto, romano ou não – o jurista mais citado no “Corpus Iuris Civilis” (no “Digesto”, mais especificamente), a mais perene compilação do direito romano, empreendida, no século XI de nossa era, pelo imperador Justiniano.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP