Marcelo Alves Dias de Souza
Como registrado aqui, o NCPC refere-se aos precedentes judiciais (em sentido estrito ou em sentido amplo) em diversas passagens. Às vezes o faz disciplinando especificamente a temática dos precedentes no “novo” processo civil brasileiro; outras vezes, em dispositivos referentes a institutos processuais que, de alguma forma, têm ligação com o tema.
Na semana passada, tratamos aqui, resumidamente, dos artigos 926 a 928 do NCPC.
Hoje conversaremos sobre art. 489 do NCPC, mais especificamente os incisos V e VI do seu § 1º, disposições que, relacionadas especificamente à fundamentação das decisões judiciais, se mostram cruciais para a utilização de precedentes (como fundamento de decisões judiciais) à luz do novo diploma legal.
Em síntese, entre outras coisas, o art. 489 passa a exigir das decisões judiciais uma fundamentação mais precisa, afirmando, no seu § 1º: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
Trocando em miúdos, o inciso V do § 1º do referido art. 489 do NCPC afirma que não se considera fundamentada a decisão que simplesmente cita um precedente sem demonstrar a pertinência dos seus fundamentos determinantes (leia-se aqui, fazendo uso da expressão cunhada na tradição do “common law”, sua “ratio decidendi”) ao caso concreto, isto é, a pertinência entre a tese/princípio/regra do precedente e aquilo que se acha discutido no caso em julgamento. Na verdade, é pressuposto, para que o julgamento de um caso esteja obrigado (lembremos que o NCPC “criou” uma série de precedentes vinculantes no seu art. 927) ou mesmo persuadido pela decisão de um precedente, que seja demonstrada a identidade, no grau de generalidade adequado (já que uma identidade completa é algo difícil), entre fundamentos determinantes dos dois casos.
No mais, se os fundamentos determinantes de um precedente não coincidem com os fundamentos determinantes do caso posterior em julgamento, os casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz do caso posterior, como distintos. Consequentemente, o precedente não será seguido.
E é aí que entra o inciso VI do § 1º do art. 489 do NCPC. Realçando a importância dos institutos do(a) “distinguishing” e do(a) “overruling”, ele afirma ser necessário, para a refutação de um precedente alegado no caso concreto, demonstrar: (i) que os pressupostos de fato e de direito do precedente e do caso em julgamento, no devido grau de generalidade, não são os mesmos; (ii) e/ou que o precedente alegado já foi devidamente superado por posterior decisão judicial de corte com competência para tanto.
Como já disse certa vez, a doutrina do “stare decisis”, desenvolvida com o passar dos anos pela tradição do “common law”, prevê técnicas ou circunstâncias que, cuidadosamente analisadas, ensejam a não aplicação do precedente, muito embora, à primeira vista, pareça ser ele de seguimento obrigatório. Das técnicas utilizadas para a não aplicação de um precedente, a da distinção entre os casos – ou seja, do(a) “distinguishing” – é a principal ou, ao menos, a mais comum. Em linhas gerais, se os fatos fundamentais de um precedente, analisados no apropriado nível de generalidade, não coincidem com os fatos fundamentais do caso posterior em julgamento, os casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz do caso posterior, como distintos. Consequentemente, o precedente não será seguido. Embora tenha relevância quanto aos precedentes obrigatórios, a distinção é importante não apenas como o meio de se evitar um precedente obrigatório, mas também como um meio de se evitar um que tenha caráter meramente persuasivo.
No que toca ao “overruling” (ou superação do precedente, como afirma o NCPC), lembremos que a doutrina do “stare decisis”, aquela construída na tradição do “common law”, não exige obediência cega às decisões dos casos anteriores. Ela recomenda, com toda ênfase, que os juízes se abeberem da sabedoria do passado, mas permite, em alguns casos, que eles se afastem do que considerarem incorreto. Um dos mecanismos utilizados para tanto é denominado, pela literatura jurídica anglo-americana, precisamente, de “overruling”, que, segundo o “(The) Oxford Companion to Law”, pode ser definido como a atitude de uma corte superior de estabelecer que um precedente seu ou decisão anterior de uma corte inferior, posta a seu conhecimento, era uma afirmação errada do direito e não deve mais ser considerada como precedente.
Para finalizar, uma constatação: cá entre nós, aplicar esse art. 489, § 1º, V e VI, vai dar um trabalho dos diabos. Imaginem o caso em que vários precedentes são alegados pelas partes, todos sem verdadeira pertinência com a questão em julgamento, devendo o julgador ter que demonstrar fundamentadamente a distinção para cada um deles. Muito bom na teoria, mas, para quem conhece a prática dos nossos juízos, algo praticamente impossível.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP
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