DESTRUÍDO PELO TRUSTE –
Trustes e Carteis são os mais conhecidos tipos de organizações monopolistas. Não admitem concorrência. Também são conhecidos como “multinacionais”. Começaram a aparecer na segunda metade do Século XIX, nos Estados Unidos, como frutos da necessidade de expansão dos modelos econômicos, que tem como objetivo principal proporcionar lucros cada vez maiores.
Os carteis – um acordo entre grandes empresas que, mantendo-se independentes, dividem a exploração do mercado, cada uma ficando com a sua fatia – e os trustes – a fusão de grandes empresas numa só, para melhor controlar o mercado – existem em toda parte do mundo, chegando a extrapolar as fronteiras dos seus países de origem.
Delmiro Augusto da Cruz Gouveia foi perseguido, em vida, pelo truste internacional, numa dessas brigas desiguais, onde o mais forte sempre sai ganhando.
Filho do cearense Delmiro Porfírio de Farias e da pernambucana Leonila Flora da Cruz Gouveia, Delmiro Gouveia nasceu em 5 de junho de 1863, na Fazenda Boa Vista, localizada no município de Ipú, no Ceará. Com o falecimento de seu pai na Guerra do Paraguai, mudou-se com a mãe para Pernambuco, em 1868.
Em 1883, Delmiro Gouveia resolveu ingressar no comércio de couros de cabra e bode.
Logo obteve sucesso com a nova profissão, passando a incomodar os seus concorrentes com a prática de preços baixos e com uma forte influência no mercado, sendo, inclusive, intermediador de negociações entre comerciantes locais e empresas de exportação.
Em 1898, tendo como referência a Feira Internacional de Chicago realizada em 1893, Delmiro Gouveia inaugurou o Mercado do Derby, no centro de Recife, que era um moderno centro de comércio, serviços e lazer, edificado em uma área de 129 metros de comprimento, com hotel, velódromo, pavilhão de diversões e 264 boxes para a comercialização de produtos.
No dia 2 de janeiro de 1900, o Mercado do Derby foi criminosamente incendiado,
Por volta de 1899, Delmiro Gouveia envolveu-se em desavenças políticas com o então governador de Pernambuco, Sigismundo Gonçalves, e passou a sofrer perseguições do Fisco, o que provocou a falência da sua mais importante firma comercial – a Silva, Cordeiro & Cia.
Em 1902, decidiu abandonar o Recife e comprou uma fazenda na localidade da Pedra, Alagoas, a 24 quilômetros da cachoeira de Paulo Afonso (rio São Francisco), onde centralizou seu comércio de couros. Depois de refazer a fortuna e livrar-se das encrencas com os políticos pernambucanos, começou a ampliar seus negócios. Adquiriu as terras de uma das margens da cachoeira de Paulo Afonso, importou maquinaria da Inglaterra e, em 1910, iniciou ali a construção de uma pequena hidrelétrica.
Diante do potencial energético da Cachoeira de Paulo Afonso, Delmiro Gouveia iniciou a construção da primeira usina hidrelétrica do Brasil. Em 1913, após dois anos de trabalho, a Usina de Angiquinho foi inaugurada.
Também viabilizou a construção de uma vila operária, escolas, estradas e o fornecimento gratuito de água e energia para a região do Povoado da Pedra.
Com a usina de Paulo Afonso fornecendo energia elétrica para a agora Vila da Pedra, Delmiro Gouveia instalou, em 1914, também com máquinas importadas da Inglaterra, a Cia. Agro Fabril Mercantil – Fábrica de Pedra (uma fábrica de fios para malharia e linhas para costura) e passou a concorrer com a Machine Cotton (grupo inglês produtor das linhas “Corrente”), que detinha o monopólio do mercado brasileiro.
Em 1914, Delmiro Gouveia construiu uma fábrica – a Fábrica da Pedra – para a produção de fios e linhas de costura, que utilizava a energia da Usina de Angiquinho e empregava dois mil operários brasileiros. A fábrica tornou-se referência, na época, passando a comercializar seus produtos no Brasil e a exportar para o Peru e o Chile.
Inaugurada em seis de junho de 1914, a Cia. Agro Fabril Mercantil – Fábrica da Pedra tinha produção inicial de 1.500 grosas de carretéis de linha para costura (marca “Estrela”) por dia. Fabricando ainda fios para malharia, cordões brancos e coloridos, a fábrica da Pedra foi o primeiro estabelecimento do gênero a ser implantado na América do Sul. Empregava 1.000 funcionários (homens e mulheres) na maquinaria e dispunha ainda de uma vila operária e uma creche. A matéria-prima utilizada pela indústria era o algodão “Seridó”, vindo de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Com as linhas para costura, bordado e croché, e as diversas espécies de fios da Fábrica de Pedra, Delmiro Gouveia conquistou o mercado nacional e levou seus produtos às regiões do Prata e dos Andes.
A linha “Estrela” cada dia ganhava mais fregueses e a fábrica de Delmiro começou a incomodar à Machine Cotton, poderoso grupo inglês que dominava o mercado do produto, através de uma subsidiária – a Cia. Brasileira de Linhas para Coser, sediada em São Paulo, distribuidora da marca “Corrente”.
A Machine Cotton deu seu primeiro golpe: Lançou o seu produto abaixo do custo.
Diversas propostas foram feitas a Delmiro Gouveia para compra de sua fábrica, mas ele as recusou. Isso originou uma luta desigual entre o truste inglês e ele.
A linha da Fábrica da Pedra era de qualidade inferior à etiqueta concorrente, mas seu preço era menor. Para sair do cerco, Delmiro teve a ideia de apelar para o sentimento de religiosidade do sertanejo nordestino e lançou a sua linha de costura com a etiqueta “Padrinho Padre Cícero”. A Machine Cotton contra-atacou com a etiqueta “Bispo”, mas perdeu essa disputa: os consumidores do Nordeste continuaram comprando a linha da Fábrica da Pedra, o que garantiu a permanência do sucesso das vendas.
Em 1916, o truste inglês novamente investiu contra a Fábrica da Pedra e registrou, no Chile e na Argentina, a marca “Estrela” (de propriedade, no Brasil, da Cia. Agro Fabril Mercantil) como sua. Essa manobra impediu que as exportações de Delmiro Gouveia fossem expostas à venda, tendo que voltar ao porto de origem. Mas Delmiro não desistiu.Registrou novo rótulo com a marca “Barrilejo”, e continuou exportando seu produto.
Ainda em 1916, a Machine Cotton tentou comprar a Fábrica da Pedra, mas Delmiro Gouveia recusou a proposta e continuou com a sua indústria.
No dia 10 de outubro de 1917, às 20h30, em frente ao seu chalé, perto da Fábrica da Pedra, Delmiro Gouveia foi assassinado, misteriosamente, com três tiros de rifle, aos 54 anos de idade.
Após o assassinato de Delmiro Gouveia, o truste baixou o preço do produto no Brasil e conseguiu baixar as tarifas do fio fino para tecer linhas. Seus herdeiros continuaram lutando contra a Machine Cotton, para não deixar extinguir-se a Fábrica da Pedra. E essa briga pareceu entrar agora num período favorável à indústria nacional. Em 19 de junho de 1926, o presidente da República, Artur Bernardes, assinou o Decreto nº 17.383, elevando a taxa de importação sobre as linhas de costura. O Decreto, depois de informar que a indústria estrangeira estava oferecendo vantagens especiais a comerciantes que se comprometessem a não vender os produtos da Fábrica da Pedra, atribuía ao truste inglês Machine Cotton, o propósito de extinguir a concorrência nacional, para depois de dominar o mercado, estabelecer preços exorbitantes.
Dois anos depois, para decepção dos herdeiros de Delmiro Gouveia, o governo de Washington Luís, empenhado num programa de estabilização monetária, revogou o Decreto do Presidente Artur Bernardes, atendendo a uma solicitação do embaixador da Inglaterra, Henry Linch, que considerava o aumento da tarifa sobre as importações de linhas de costura um ato de hostilidade comercial.
Esse fato acarretou o fim da fábrica de linhas construída por Delmiro Gouveia.
Em 1929, 12 anos após a morte de Delmiro Gouveia, a MACHINE COTTONS realizou seu sonho, adquirindo a Fábrica da Pedra dos irmãos Menezes, seus novos proprietários. Já nas mãos da empresa inglesa, todas as máquinas da fábrica foram jogadas no Rio São Francisco, após serem destruídas com golpes de picareta.
No auge da prosperidade dos empreendimentos de Delmiro Gouveia, seus adversários políticos, em Recife, chegaram a duvidar da sua honestidade. Mas ele deu-lhes a seguinte resposta:
“Se eles tivessem no sangue, nos nervos, nas faces, vergonha e no organismo alguma coisa de energia e sentimento, deviam orgulhar-se de haver um homem do povo, pobre porém trabalhador, capaz de mostrar-lhes com exemplos que quem luta pela vida com honradez, atividade e perseverança, pode conseguir uma posição na sociedade, e em vez de andarem pelas ruas, cafés, trens e esquinas empregando-se na maledicência, podiam dedicar-se ao trabalho proveitoso, que nobilita o homem e dá-lhe sempre o direito de confundir seus inimigos gratuitos”.
Violante Pimentel – Escritora