AS ESQUINAS DA MINHA EXISTÊNCIA –

A cama parecia ter espinhos, ou pregos, como uma daquelas camas indianas. O quarto se comprimia, sentia-me sufocar. Sem fôlego. Por um triz, por quase nada, meus pensamentos não arrebentaram a pouca lucidez que me restava.

Arrumei meus cabelos e calcei as sandálias mais baixas do armário. Com a lanterna na mão, segui rumo às esquinas da minha existência. Focava os quatro cantos. A luz produzia sombra e assombrações. Teria que encontrar os sonhos perdidos. Buscaria até a última estação, nos achados e perdidos, o que procurava.

Numa das estações da alma, lá estava ela, como eu a havia deixado, sentada num banco empunhando um cartaz, onde estava escrito: “Não me abandones. Não saberei viver sem ti!” Assinado: Felicidade. Sorri e a tomei para mim. Minha alma brilhava e agradecia por sua espera. Estimulada por encontrar Felicidade, saímos em busca de outros sonhos perdidos.

Em nosso caminho, a Felicidade me lembrava das coisas passadas. Dos momentos em que, juntas, sentimo-nos completas e realizadas. Eu sorria e o corpo não mais doía. Felicidade havia me arrancado boas risadas com nossas recordações.

Ao chegar à última estação, dirigimo-nos ao balcão das coisas perdidas. Entre as pilhas de entulhos, pude ver uma coisa que me pertencia: meu guarda-chuva preto com poás brancos. Eu e Felicidade vibramos, e sem nos contermos, o abrimos com a secura de quem vive no deserto e se depara com um oásis.

Logo depois vimos voar de dentro daquela sombrinha, todos os sonhos perdidos. Lá estavam o amor, a esperança e a paz. A amizade saiu meio tonta. Havia sido baqueada pela falta de confiança. Porém, eu sentia falta de alguns outros sonhos… Onde eles estariam?

Com um pouco mais de atenção, vi uns olhinhos misturados com os poás brancos do guarda-chuva. Os últimos sonhos estavam ali acanhados, em sentinela, com receio de se mostrarem. Tinham medo de não serem aceitos. Sorri, com graça no olhar, e lhes estendi minhas mãos em aconchego. O meu gesto fez com que a conquista, a paixão e o desejo me abraçassem com calor e vontade.

Com todos os sonhos reunidos, pegamos o trem para a estação primeira, a estação do recomeço, a estação iluminada pelo esplendor das novas manhãs, na esperança de transformar em realidade os sonhos perdidos da minha existência. Eu e a Felicidade.

 

 

Flávia Arruda – Pedagoga e escritora

 

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2 respostas

  1. Esquinas da minha vida é um livro que vale a pena ler. Feito ao modo Flávia, suas crônicas-poema-em prosa, transporta-nos para esse universo misterioso das entrelinhas, pressupostos e suposições. Ler Flávia é sentir esse gosto de mel perene na boca, pois suas esquinas são verdadeiras colmeias recheadas dos néctares dos deuses. E o bom de seus textos é que eles brincam com as fábulas, os conceitos, inventam neologismos e contam causos com humor e leve ironia. Ah, com cobertura de poesia.

  2. Os textos de Flávia Arruda são impecáveis, nos levam a sonhar acordada, refletir sobre as coisas belas de nossa existência. Parabéns!

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