AS PROPAROXÍTONAS –
A dupla caipira “Alvarenga e Ranchinho”, formada em 1929 por Murilo Alvarenga, mineiro de Itaúna, e Diésis dos Anjos Gaia, paulista de Jacareí, iniciou sua carreira apresentando-se em circos no interior de São Paulo.
Em 1934, Murilo e Diésis foram contratados pelo maestro Breno Rossi e passaram a se apresentar na Rádio São Paulo.
A carreira da dupla se consolidou, após a mudança para o Rio de Janeiro, onde os dois gravaram o seu primeiro disco, em 1936, e passaram a integrar o grupo de atrações do Cassino da Urca. Foi aí que trabalharam durante dez anos e aprimoraram o talento para a sátira política, uma das suas principais características. Por causa dessas sátiras, participaram de dezenas de campanhas eleitorais e também acabaram presos diversas vezes.
A dupla participou do primeiro filme falado feito em São Paulo, “Fazendo Fita”, (1935), levada por Ariovaldo Pires, o Capitão Furtado. Fizeram participações em mais de 30 filmes.
Em 1949, a dupla “Alvarenga e Ranchinho” lançou a composição “O Drama de Angélica”, na qual, cada verso termina com uma palavra proparoxítona, ou seja, a sílaba tônica cai na antepenúltima sílaba. Essa música foi o seu maior sucesso.
Ao que parece, essa dupla foi a precursora das composições com versos terminados em palavra proparoxítona.
“O Drama de Angélica” nos remete àqueles “causos” que ouvíamos de nossos antepassados, histórias das quais ansiávamos pelo final, mesmo que fosse trágico. Uma verdadeira novela, arrebatadora, com idas e vindas, em uma interpretação perfeita da dupla. Ao final, não há como não sorrir, em face do modo satírico, como é contado “O Drama de Angélica”.
A formação original da dupla se desfez em 1965, quando Diésis a abandonou definitivamente. Sumiços anteriores já haviam ocorrido, quando, então, havia sido substituído por Delamare de Abreu, irmão por parte de mãe de Murilo Alvarenga.
Com o rompimento definitivo, um “terceiro” Ranchinho surgiu, Homero de Souza Campos, conhecido também como Ranchinho da Viola e como “Ranchinho II” (apesar de ter sido o “terceiro”). Homero cantou com Alvarenga de 1965 até o falecimento deste, em 1978.
Pois bem. Em 1971, cerca de vinte anos depois do lançamento de “O Drama de Angélica”, de “Alvarenga e Ranchinho”, foi lançado o LP “CONSTRUÇÃO”, de Chico Buarque de Holanda, com dez músicas belíssimas, onde se destaca “Construção”, que dá nome ao disco, com estrondoso sucesso no cenário da MPB.
Por coincidência, “Construção” de Chico Buarque e “O Drama de Angélica”, da dupla caipira “Alvarenga e Ranchinho”, tem em comum, versos cuja última palavra é proparoxítona. Além disso, “Construção” também retrata um drama do cotidiano, tal qual a música “O Drama de Angélica”, com a diferença de que esta última tem conotação satírica.
Para muitos admiradores, somente Chico Buarque, com a sua inteligência privilegiada, seria capaz de usar essa peculiaridade, numa composição musical.
Indiscutivelmente, Chico Buarque é genial. Mas, em relação às proparoxítonas ao final dos versos, a dupla caipira, “Alvarenga e Ranchinho”, já tinha feito o mesmo, há mais de vinte anos (1949), com a música “O Drama de Angélica”.
A coincidência de versos, finalizando com uma palavra proparoxítona, feitos por compositores de mundos e épocas diferentes, chamou a atenção da crítica.
Na verdade, a genialidade é universal. Não existe regra geral para se nascer gênio, pessoa com grande capacidade mental. Ela pode se manifestar por um intelecto de primeira grandeza, ou um talento criativo fora do comum.
Chico Buarque, intelectual com ótima formação cultural, e a dupla “Alvarenga e Ranchinho”, de origem humilde, que iniciou a carreira artística em circo, tiveram inspirações parecidas, ao escrever um drama, com versos terminados com uma palavra proparoxítona.
Ainda hoje, o LP “CONSTRUÇÃO”, de Chico Buarque, lançado no início de 1971, é considerado um dos grandes discos da história da MPB, com versos alexandrinos (o que contém doze sílabas poéticas) e uma palavra proparoxítona no final de cada verso.
O primeiro poeta brasileiro a usar versos alexandrinos foi Machado de Assis, ainda no período do Romantismo, movimento artístico caracterizado pelo sentimentalismo, subjetivismo e fuga da realidade.
Esse movimento surgiu no século XVIII na Europa, durante a revolução industrial, e logo se espalhou por diversos países, como: França, Alemanha, Inglaterra, Brasil e Portugal. Durou até meados do século XIX, quando surgiu o Realismo.
A coincidência que há nas duas canções, “O Drama de Angélica (1949 – Alvarenga e Ranchinho) e “Construção” (1971 – Chico Buarque) não está relacionada somente à presença de uma palavra proparoxítona no final de cada verso. As duas canções descrevem, respectivamente, um drama do cotidiano.
Chico Buarque descreve, em “Construção”, o dia a dia de um operário da construção civil, com todos os riscos e desencantos, usando versos alexandrinos ( o que contém doze sílabas poéticas) e uma palavra proparoxítona no final de cada verso. No caso, as proparoxítonas funcionam como tijolos em uma construção mágica e trágica, em uma tensão crescente, embalada pelo bonito arranjo do maestro Rogério Duprat (1932 – 2006).
Chico Buarque é um intelectual, com sólida formação cultural. Tornou-se um ícone da Música Popular Brasileira.
Por sua vez, a dupla “Alvarenga e Ranchinho”, de origem humilde, iniciou a carreira artística em circo e tornou-se um ícone da música caipira, hoje chamada “Música Sertaneja”.
Salve a genialidade do Compositor Brasileiro!
Drama de Angélica (1949) – Murilo Alvarenga e M.G. Barreto
Ouve meu cântico
quase sem ritmo
Que a voz de um tísico
magro esquelética
Poesia épica
em forma esdrúxula
Feita sem métrica
com rima rápida
Amei Angélica
mulher anêmica
De cores pálidas
e gestos tímidos
Era maligna
e tinha ímpetos
De fazer cócegas
no meu esôfago
Em noite frígida
fomos ao Lírico
Ouvir o músico
pianista célebre
Soprava o zéfiro
ventinho úmido
Então Angélica
ficou asmática
Fomos ao médico
de muita clínica
Com muita prática
e preço módico
Depois do inquérito
descobre o clínico
O mal atávico
mal sifilítico
Mandou-me célere
comprar noz vômica
E ácido cítrico
para o seu fígado
O farmacêutico
mocinho estúpido
Errou na fórmula
fez despropósito
Não tendo escrúpulo
deu-me sem rótulo
Ácido fênico
e ácido prússico
Corri mui lépido
mais de um quilômetro
Num bonde elétrico
de força múltipla
O dia cálido
deixou-me tépido
Achei Angélica
já toda trêmula
A terapêutica
dose alopática
Lhe dei em xícara
de ferro ágate
Tomou num fôlego
triste e bucólica
Esta estrambólica
droga fatídica
Caiu no esôfago
deixou-a lívida
Dando-lhe cólica
e morte trágica
O pai de Angélica
chefe do tráfego
Homem carnívoro
ficou perplexo
Por ser estrábico
usava óculos
Um vidro côncavo
o outro convexo
Morreu Angélica
de um modo lúgubre
Moléstia crônica
levou-a ao túmulo
Foi feita a autópsia
todos os médicos
Foram unânimes
no diagnóstico
Fiz-lhe um sarcófago
assaz artístico
Todo de mármore
da cor do ébano
E sobre o túmulo
uma estatística
Coisa metódica
como Os Lusíadas
E numa lápide
paralelepípedo
Pus esse dístico
terno e simbólico
“Cá jaz Angélica
Moça hiperbólica
Beleza Helênica
Morreu de cólica!”
CONSTRUÇÃO
Chico Buarque
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Violante Pimentel – Escritora
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