BAIÃO DE DOIS: PATRIMÔNIO CULINÁRIO BRASILEIRO ORIUNDO DA TERRA CEARENSE –

Sol a pino no sertão, naquele fim de 1940, o tropeiro Zé Calixto vinha de viagem desde Salgueiro, mais de mês no caminho de poeira, tangendo a pulso uma fieira de oito mulas com balaios de fibras de ouricuri e doze jumentos sobrestados de cangalhas, de farinha, rapadura e uma ancoreta d’água de beber. Transpassada a serra do Araripe, apresta a marcha na longa descida até Barbalha e o Crato cearense, seu destino.
Calixto com uma fome canina pela jornada, vê ao longe após a curva, próximo de uma terra do Padim Cícero, o rancho de Vó Quitéria, a fumacinha subindo da lenha sobre a laje da lareira. A bondosa senhorinha de cabelos brancos, já nos oitenta era solteira, como se diz no sertão, “ficou no caritó”.
De voz fina, gasguita, vó Quitéria, nascida em Brejo Santo, oferecia no alpendre sua já afamada pelos viajantes do sertão farta gamela com o baião de dois, também chamado “rubacã”. E o “mais mió” é que acompanha uma vasilha com tripa torrada bem sequinha, estalando de crocante. Na mesa adiante do forno à lenha, sob a coberta de palha do oitão, duas prateleiras amostravam copos pendurados e a tradicional “água-benta”: aguardente purinha, por ela chamada de “engasga-jegue”.
Como se dizia na roça, seu Zé Calixto, que andava “ingembrado”, penso, meio torto, um pouco “zambeta” das pernas, acabara de chegar no seu paraíso nordestino. Logo que entrou, assentiu um “Louvado seja”, instou, pediu à velha Quitéria uma “meiota”, ou seja, meia caneca de aguardente. Como de costume, ela fez propaganda: “Meu baião não é que nem pinga, não é “remoso” (comida forte), não!”
Enquanto aproveitava que a comida estava aquentando na trempe, Zé Calixto dizendo que estava “peguento”, suarento, ajoujou a tropilha embaixo de uma quixabeira, e desceu até o córrego para “se banhar”.
O cheiro do baião de dois ocupava a ambiência do ranchinho simples. O feijão de corda ficara de molho a noite toda, já pronto pra escaldar. A cebola já estava cortada em círculo, o alho socado, e um pedaço grande de paio cortado rente. O arroz na panela de barro já esfumava no canto do fogo na chapa. O queijo de coalho já estava derretendo, pronto para cobrir o arroz. Após o refogue entra o feijão escaldado. Ao lado um alguidar coberto de macaxeira cozida na manteiga de garrafa. Zé Calixto logo chegou à vetusta mesa de tampo de braúna e se assentou no tamborete.
Essa maravilha da culinária nordestina, talvez de origem portuguesa com incremento nativo, com o tempo preciosidade sertaneja, baião de dois, ou rubacão, que fez o regalo do tropeiro Calixto, para nós já é considerado patrimônio imaterial do Brasil… quem provou um dia, faz favor, dê um ôxe, pai d’égua!
Luis SerraProfessor e escritor
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