BAR GATO PRETO E PENSÃO DA ESPERANÇA –
01) Na chamada “Cinco Bocas”, território humano e sentimental de Macaíba, não existe mais o bar “Gato Preto”, que tem suas origens nos primórdios da “civilização”. Foram mais de cem anos de história viva, de pastores da terra, das nuvens, das estrelas, queimando vigílias na província submersa. Chão sagrado de antepassados, povoado de rostos ocultos, de figuras pálidas por longas noites assombradas. Nele vislumbro os vultos inaugurais de Zé Solon, Alberto Silva, Chico Cajueiro, Lula Ramos, Jorge Chocalheiro, Zé Pelado, Manoel Sabino, Chico de Dulce, Banga, Sinval Duarte, Manoel Pixilinga, Jorge de Papo, Odilon Benício, entre tantos outros que desapareceram vítimas do tempo, esse astrólogo arbitrário. As “Cinco Bocas” ferinas, são cinco ruas que deságuam como um rio noturno na intimidade simples dos lençóis de minha terra. Rua do Cajueiro, rua do Benjamim, beco de seu Alfredo, beco do Mercado e rua da Cruz. Esse pedaço de chão no centro de Macaíba carrega a saga lírica, popular e mística de muitos obreiros que gastavam saliva diariamente no pórtico de suas entranhas, de suas calçadas. O “Gato Preto”, sempre foi o antigo desterro de mim mesmo, da infância perdida mas petrificada no silêncio de suas paredes. Mas, o que importa é que por onde andei eu carreguei o seu andor. Mesmo deformado fisicamente, o seu espírito vive. Basta contemplá-lo e deixar-se envolver na sua atmosfera densa, no centro de Macaíba. Era um bar, com todos os seus habitantes. Figuras opacas, empíricas, etílicas. Todos reduzidos a humanidade comum. Todos crentes de que a verdade e a vida nunca estão num único sonho mas em muitos. Era o nosso “Grande Ponto” que tombou e morreu como o de Natal. Tanto ontem quanto hoje, caracterizou-se como um cenário profuso e difuso, tecido de conversas banais, de palavras soltas, malandras, boatos, chafurdos soprados pelo errante vento da esquina. Tudo coisas fugidias: prateleiras, garrafas solitárias e eternas, sinucas, bilhares. Todos os seus notívagos caminheiros são incertos, dispersos e derradeiros. Aí de nós se não fosse o mistério do nome, do 13, do “Gato Preto”. Por que “Gato Preto”? Não sei. As coisas misteriosas são fascinantes.
02) Na primavera política do início dos anos sessenta no Rio Grande do Norte, pontificava na província submersa de Macaíba, a imbatível Pensão da Esperança. Nasceu no fragor das lutas eleitorais e foi a nau catarineta do aluizismo. Nela singrava o mar encapelado da política macaibense, a capitã de longo curso e minha prima Graziela Mesquita. Bacurau de cinco estrelas, Grazi era uma das dissidências dos Mesquita. Situada à rua de Nossa Senhora da Conceição, a Pensão da Esperança, era também o Porto Seguro das caravanas, das manifestações aluizistas e quem fosse arara jamais seria hóspede. Graziela solteirona invicta, mas parecia uma matrona romana. Andava nas pontas dos pés, como se fosse desabar de frente. Pesava-lhe muito o imenso busto-arbusto. Elétrica, vibrante, frenética e fanática, era simpática com todos os seguidores da causa. Nesses tempos trepidantes tivemos uma relação política difícil mas respeitosa. Isso influiu, para que, mas tarde, tornássemos correligionários, até a sua morte. A Pensão da Esperança era o termômetro político da cidade mas também o alvo possível das manifestações hostis do dinartismo radical. De quando em vez, ocorriam “atentados à bomba” no recinto, obra de alguns ativistas sorrateiros para perturbar o sossego de Graziela e testar o seu prestígio. Mas, nem era preciso. Como um raio, riscava à porta o delegado de polícia para as necessárias averiguações e prisão dos culpados. Grazi era intocável, um patrimônio tombado e vivo da cruzada da esperança. Outro enfoque político digno de nota, era a sua fiel ala-moça, treinada para cantar as canções de Aluízio. “Cigano feiticeiro, teu feitiço, ai meu Deus, eu faço tudo, tudo pelo governo seu e o eleitor o que deve fazer? É virar cigano e votar com você”. Isso sem falar na canção principal que dizia que “Aluízio Alves veio do sertão, lá do Cabugi…”. Assim se passou uma página folclórica, melódica, ingenuamente dramática e humana da vida política de Macaíba, que teve na Pensão da Esperança o oxigênio natural desse mundo frágil e encantado. O seu antigo endereço desapareceu com a sua proprietária, só restando a memória visual e auditiva da reconstituição dos gestos, das verdes bandeiras pandas ao vento, do ruído da multidão, da silhueta de Graziela, tudo como uma saudade suspensa no ar, mas renovada todas as vezes que passo pela calçada.
Valério Mesquista – escritor – ( [email protected] )