BOA NOITE –
As figuras populares e anônimas que vivem nas cidades me chamam a atenção. Embora familiares, delas pouco se sabe. Estão o tempo todo ali em seus pontos territoriais, fazendo parte da vida de todos, quase sempre sem serem notadas. Formam uma presença forjada em ausências.
Aquela figura miúda é parte integrante do cenário, postada ao lado da entrada de serviço de um restaurante mineiro encrustado numa das alamedas dos Jardins. Falante, entrosada com todos, sempre com um isopor carregado com comestíveis postado no chão e uma garrafa térmica com um café famoso nas redondezas, vive cercada de pessoas, conversas e sorrisos. Manobristas, garçons e outros funcionários da casa são fregueses de carteirinha. Passantes como eu, também.
Certo dia, depois de uma daquelas chuvas ligeiras de Sampa, uma mulher caiu na calçada depois de escorregar numa tampa de bueiro. Prontamente, a figura miúda entrou em cena para socorrer e ajudar a outra a se recompor. Providenciou cadeira, conforto moral, guardou a bolsa, perguntou a quem da família deveria chamar e providenciou o táxi recomendando seguir para o pronto-socorro.
Guardo perguntas a respeito daquela figura miúda. Quem é e como vive a mulher pobre, negra, de certa idade, com todas as marcas de luta pela vida espalhada no corpo musculoso, que se veste com capricho em roupas para esportistas, sempre alegre, comunicativa?
A mente ágil garante respostas rápidas e agudas às brincadeiras provocativas. Todos a conhecem simplesmente por Boa-Noite, já que ela distribui esse cumprimento a qualquer hora do dia.
A mim, concedeu a senha da proximidade, trocar a hora do dia no cumprimento: boa-noite durante o dia, bom-dia durante a noite. Sem que eu saiba por que cargas-d’água, sempre que arrisco um boa-tarde, Boa-Noite responde com um muxoxo engraçado – nunca ouvi dela qualquer reverência à tarde, nem mesmo àquelas que terminam em dourado.
De repente, me dei conta de que fazia algum tempo que eu não via nossa personagem. Resolvi perguntar aos manobristas, dois senhores grisalhos que emolduram a entrada do restaurante com extrema simpatia, e com quem troco chistes todos os dias quando passo na calçada.
Ficamos em silêncio, lembrando de Boa-Noite. Ela simplesmente não veio certo dia e em nenhum mais depois daquele que faltou. Ninguém sabe nada a respeito dela, onde mora, se tem família. Fazia parte do cenário, acomodada naquele cantinho ao lado do portão de serviço do restaurante. Quando e como chegou, desde quando estava ali ninguém sabia.
Senti no coração um ar de boa-noite definitivo e caminhei até em casa com a estranha sensação de despedida sem direito a adeus. Sem bom-dia. Sem boa-tarde. Sem Boa-Noite.

Heraldo PalmeiraProdutor Cultural

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