BOÊMIA OU BOEMIA –
Continuamos neste número com os fatos da vida do estudante de medicina Paula Nei, a partir do livro “A vida boêmia de Paula Nei”, que me foi presenteado pelo colega César Autran, psiquiatra e literato de primeira ordem. O autor é Raimundo de Menezes. É uma terceira edição de 1957 da Livraria Martins Editora.
Todos esses episódios são vistos a partir do centro literário e boêmio do Rio de Janeiro, a rua do Ouvidor.
Ora, se ao boêmio interessa a pronúncia! Para ele pode ser até boémia. E, por estranho que pareça, as três formas estão corretas.
Estudante de medicina e repórter policial, passava a maior parte do tempo nas imediações da rua do Ouvidor, onde se encontravam os naturalistas no “Cailteau”; os românticos, na “Castelões”; os simbolistas, no “Deroche”; e os parnasianos, que era o grupo de Nei, no “Pascoal” e na “Maison Moderne”, depois substituídos pela confeitaria “Colombo”. Espírito dispersivo, “blagueur”, satírico, descuidado e indolente, ditava leis e lançava hábitos de extravagância.
Na Faculdade de Medicina, ganhou fama pelas réplicas inusitadas e inteligentes, o que era uma tentativa de compensar a falta de estudos. Determinado professor, extenuado de fazer perguntas sem obter respostas satisfatórias, tentou ajudá-lo:
– Diga, ao menos, Sr. Nei, quantos ossos tem o crânio de um homem?
– Não me recordo, professor… Mas tenho-os todos aqui na cabeça…
Numa prova de anatomia, o mestre fez o seguinte pacto com Nei: se ele fosse capaz de responder à primeira pergunta, não faria a segunda, dando-se por satisfeito. Ato contínuo mandou a questão:
– Quantos fios de cabelo tem o senhor?
– Duzentos e sessenta e cinco mil, oitocentos e noventa e quatro…
– Mas, como chegou o senhor a essa conclusão?
– Caro professor, não se esqueça de que, segundo o nosso pacto, o senhor só faria uma pergunta. Trato é trato!
Em outro exame, sem ter estudado absolutamente nada, entre as alternativas de argüição ou exposição, preferiu a segunda, pois poderia se valer do verbo fácil e da dicção invejável que emprestava a sua bela oratória. Começou:
– Nos mares procelosos da ciência humana, às vezes, as mais lúcidas inteligências se debatem e vão ao fundo…
O Visconde Sabóia, seu lente e, como ele, cearense, vendo que o palavreado não passava de puro proselitismo, interrompeu-lhe:
– Oh! Sr. Nei, já que deseja fazer uma dissertação literária extraponto, falando sobre coisas aéreas, faça-me o favor de dizer, se a inteligência naufraga, que será da ignorância?
– Essa bóia, senhor Visconde!
Brício Filho, em crônica no Jornal do Brasil, em 1940, relembra a figura do rei dos boêmios: representavam os exames de Nei um verdadeiro acontecimento escolar. Enchia-se a sala atraída pela curiosidade, pelas rajadas espirituosas, esfuziantes, a cada momento, gargalhando a assistência e, com ela, freqüentemente, a banca julgadora
Ao final do quarto ano, foi reprovado. Abandonou a faculdade e amenizou o sofrimento e as frustrações no álcool, nos versos e nas conversas com os amigos. Indagado por Coelho Neto por que deixara a medicina, Nei respondeu:
– Saí da vida, não pela porta da morte, senão pela da própria vida: foi o parto a minha morte. Morri do parto. O professor Luiz da Cunha Feijó Júnior entendeu que devia me argüir sobre a obstetrícia inteira. A cada dificuldade que me propunha, eu encontrava uma saída, até que, num caso muito intrincado, resolvi ser lisonjeiro: num caso desses eu mandava, a toda pressa, chamar Vossa Excelência… O homem zangou-se e reprovou-me. Senti um grande alívio n’alma à ideia de que nunca concorreria para a desventura de um ser, trazendo-o a esta vida imbecil e insípida na qual só vencem os medíocres!
Encontrou-se Paula Nei com um ex-colega de faculdade, recém-formado, numa livraria da rua do Ouvidor. Curioso, Nei observou que o livro comprado pelo doutor tinha o título: “Como ficar rico em pouco tempo”. Irreverente, segredou-lhe ao ouvido:
– Acho bom que você leve como complemento um volume do Código Penal…