Não é exagero dizer que, na vasta lista de paixões dos brasileiros, estão os desenhos japoneses.
É um amor antigo: começou na TV dos anos 1990 e, com empurrões do streaming e da pandemia, o país se tornou o terceiro maior mercado de animes fora do Japão e da China, atrás apenas de Estados Unidos e Índia.
Não à toa Ana Maria Braga já apareceu vestida de Sakura, e Zeca Pagodinho se fantasiou de Naruto.
“Há muita celebração da cultura japonesa no Brasil, por isso é tão importante para nós nos envolvermos em projetos no país”, diz Gita Rebbapragada, diretora de operações da Crunchyroll. Principal plataforma on-line para consumo de animes no mundo, a empresa montou uma equipe em São Paulo, tem investido na tradução de títulos para o português e ampliado a participação em eventos de fãs, como a CCXP, que acontece na capital paulista.
Febre da TV
Para chegar até aqui, uma ajuda foi preciosa para o segmento: a dos “Cavaleiros do Zodíaco”. O desenho sobre o órfão Seiya em busca de sua irmã sequestrada estreou em 1994, na Rede Manchete. Ele inaugurou um primeiro “boom” dos animes no Brasil.
Na época, as produções japonesas eram uma escolha fácil para preencher as grades infantis de emissoras de TV do Brasil, pelo baixo custo de venda e dublagem. Bem antes de Cavaleiros do Zodíaco, títulos como “Homem de Aço”, “Zoran: O Garoto do Espaço”, “Fantomas”, “Speed Racer” e “Super Dínamo” chegaram ao país numa primeira leva, a partir dos anos 1970.
Mas foi com a saga de Seiya que esse tipo de animação começou a ganhar status de mercado, com brinquedos, música, eventos e todo o tipo de merchandising. Uma febre passava e logo vinha outra. Foi assim desde “Pokémon”, com seus desejados jogos de videogame, aos monstros de “Yu-Gi-Oh” e os cards que se espalharam por escolas, shoppings e pracinhas.
O sucesso dos animes na TV brasileira abriu as portas para a explosão dos mangás — os quadrinhos nos quais são baseados a maioria dos desenhos japoneses.
Em 2001, as revistas mensais de “Dragon Ball” e “Cavaleiros do Zodíaco”, com cem páginas em média, passaram a ser quinzenais depois de poucas edições. Esse sucesso surpreendeu muita gente do próprio meio editorial, que não acreditava que um gibi em preto-e-branco e com a leitura invertida pudesse dar certo por aqui.
“A nossa maior dificuldade não foi com o público, mas com os integrantes do mercado dos quadrinhos no Brasil: dos distribuidores aos jornalistas (inclusive os especializados em quadrinhos), todos viram a chegada dos mangás como algo menor, sem grande importância. É claro que o sucesso estrondoso de ‘Dragon Ball’, ‘Cavaleiros do Zodíaco’, ‘Evangelion’ e ‘Vagabond’ mudou tudo isso”, explicou Rogério de Campos ao g1, em 2008. Nesse ano, ele era diretor editorial da Conrad Editora, uma das primeiras a lançar mangás no Brasil.
O 2º boom
Duas décadas se passaram e, durante a pandemia de Covid-19, o mercado de animes viveu mais um momento de virada.
No auge do isolamento em 2020, quando as vendas totais de bilheteria nos Estados Unidos despencaram 80% no ano e o mercado de cinemas do Japão caiu 45%, a indústria de anime contraiu apenas 3,5%, com um valor de mercado de cerca de US$ 21,3 bilhões.
“A geração Z [dos nascidos a partir da segunda metade da década de 90] passou a buscar histórias diferentes, de lugares diferentes, algo como portais para outros mundos, e os animes são exatamente isso”, avalia a diretora de operações da Crunchyroll.
“Com a pandemia, houve uma aceleração no número de consumidores e fãs, que nunca tínhamos visto. Alguns títulos simplesmente entraram no ‘zeitgeist’ cultural.”
É o caso de “Demon Slayer”, história sobre um garoto que se torna caçador de demônios depois de ver toda a sua família ser morta por um deles. Um filme lançado no primeiro ano da pandemia, entre as duas primeiras temporadas do desenho, arrecadou mais de US$ 504 milhões em cinemas do mundo todo, se tornando o maior sucesso cinematográfico de todos os tempos na indústria de animes.
Fora da bolha
É claro que o momento favorável impulsionou negócios no setor. Em 2021, a Sony Pictures comprou a Crunchyroll da AT&T por US$ 1,2 bilhão. A decisão foi pela fusão com o Funimation, seu próprio serviço de streaming de animes, criando a maior plataforma especializada do gênero.
O principal esforço da companhia atualmente é para dissociar os desenhos japoneses da imagem infantil e de estereótipos preconceituosos atribuídos aos otakus — os fãs de animes e mangás –, que muitas vezes já foram representados como pessoas desajustadas socialmente.
“Não dá para dizer que os animes ainda fazem parte de um nicho, mas eles ainda não têm um fluxo super incrível. Estamos tentando descobrir formas de ampliar isso”, explica Terry Li, vice-presidente executivo de negócios emergentes da Crunchyroll.
Para conquistar mais espectadores fora do Japão, o segredo tem sido diversificar narrativas. Muito além de “Dragon Ball”, “Naruto” e outros do gênero shounen (na categorização emprestada dos mangás, histórias de ação com protagonistas masculinos, geralmente adolescentes), é possível encontrar animes sobre política, romance, música, viagens, esporte, investigações policiais e uma infinidade de outros assuntos.
“Com o crescimento da demanda global, streamings – como o nosso – compartilham com os estúdios informações sobre o desempenho dos títulos. Assim, eles entendem melhor os tipos de história mais buscados em cada território. Isso tem gerado projetos bem interessantes”, diz Gita Rebbapragada, da Crunchyroll.
“Os mercados internacionais desempenham hoje um papel muito importante em termos de determinar o que cada estúdio vai criar, porque é deles que virá grande parte da demanda no futuro.”
Entre os destaques mencionados pela executiva para o Brasil, um deles chama a atenção por unir duas paixões do país. “Blue Lock” tem uma história sobre futebol, com a seleção japonesa tentando se reerguer após um vexame na Copa do Mundo de 2018. Pelé, Neymar e Zico chegam a ser citados no desenho.
Fonte: G1