O Brasil registrou, em junho de 2022, 4.739 mortes pela Covid-19, em uma alta de 49,2% em relação a maio. É a primeira vez que o número de óbitos pela doença aumenta de um mês para outro desde fevereiro.
Os dados foram apurados pelo consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias de Saúde do país.
Nesta reportagem, você vai ver que:
- o Brasil apresentou a primeira alta mensal de mortes desde fevereiro. Por causa da grande quantidade de casos, entretanto, o índice de letalidade caiu;
- o frio, o aumento das aglomerações e a retirada das máscaras são apontados como motivos para o aumento de casos;
- há bastante desigualdade regional na vacinação;
- é importante tomar a dose de reforço para evitar complicações;
- a Covid é uma doença que pode causar, além da morte, sintomas por um longo período (Covid longa), e, por isso, a proporção mortes/casos não é a única que deve ser analisada;
- pelo mesmo motivo, o vírus continua sendo uma ameaça à saúde, e devemos continuar as medidas de proteção.
Queda no índice de letalidade
Apesar do aumento de mortes em número absoluto, a letalidade da doença – número de mortes em relação ao número de casos conhecidos – caiu de um mês para o outro. Isso porque maio registrou pouco mais de 570 mil casos da doença, enquanto junho teve mais de 1,3 milhão de casos.
O professor Eliseu Alves Waldman, do Departamento Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), explica que o aumento absoluto nas mortes já era esperado, exatamente por causa do aumento expressivo do número de casos.
“É esperado – porque aumentou muito o número de casos em junho em relação a maio, e, principalmente, em relação a abril”, lembra. Naquele mês, foram registrados cerca de 500 mil casos de Covid no país.
A letalidade da Covid para os últimos 6 meses também foi a menor para um semestre desde o início da pandemia.
Ao mesmo tempo em que os números oficiais apontam o aumento dos casos (veja detalhes abaixo) e uma queda na letalidade, os especialistas ouvidos pelo g1 também ponderam que, hoje, é mais difícil fazer análises com esses dados, por causa dos autotestes.
“Principalmente a partir desse ano, como houve um aumento da proporção da população que tem acesso ao diagnóstico rápido, esse diagnóstico é feito em farmácia, que nem sempre notifica, e muitos testes estão sendo feitos pelo próprio indivíduo, pelo próprio paciente, e ele não notifica”, observa Eliseu Waldman, da USP.
Para Beatriz Klimeck, antropóloga e doutoranda em Saúde Coletiva na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), os autotestes, apesar de terem sido uma contribuição positiva, trouxeram consigo uma subnotificação de casos ainda maior do que a que já era vista em outras fases da pandemia.
“Ainda bem que a gente tem essa função [do autoteste]. Ele barateou o acesso ao diagnóstico e, posteriormente, ao isolamento, para quem quer fazê-lo, como deveria“, diz Klimeck.
“Mas ele gera uma subnotificação gigantesca: não teve um esforço de fazer alguma forma de notificação obrigatória ou voluntária, mas que funcionasse, então a gente sabe que esse número [de casos] é muito defasado. A gente pode falar de um número muito maior de casos reais – pessoas que testaram positivo, [que o teste] deu reagente e que não foram notificadas para o sistema de saúde“, ressalta a pesquisadora.
Aumento de casos
Para Waldman, o aumento nos casos nos últimos meses deve-se, principalmente, à sazonalidade – a chegada do outono e do inverno traz o aumento da circulação de vírus respiratórios, como o Sars-CoV-2 – e, também, à retomada de eventos sociais com aglomerações e sem o uso da máscara.
“Acho normal que deixasse de ser recomendado o uso de máscara na rua. Mas devia ser mantido, mesmo na rua, quando tem aglomeração, e em ambiente fechado. E manter os mesmos cuidados de distanciamento e de higiene de mãos. Acho que isso foi praticamente abandonado”, pondera.
“Festas juninas voltaram e as atividades sociais, festas, casamentos, voltaram sem cuidados aparentes. Isso contribui, além da sazonalidade, para intensificar um pouco mais a atual onda. Nós temos que nos convencer que vamos ter que continuar tendo cuidado por um bom tempo“, avalia Waldman.
O epidemiologista também levanta a hipótese de que estejamos entrando numa fase endêmica da Covid-19: a previsão dele é de que se repita o que foi visto no ano passado – um aumento de casos até o final de julho, uma estabilização e, no fim de agosto, uma diminuição.
“Se não tivermos nenhuma variante com grande capacidade de infecção e de causar formas mais graves, a gente deve voltar a ter outro pico no inverno do ano que vem. Isso é uma hipótese”, afirma.
Ele pontua, ainda, a existência de outros vírus respiratórios – como o da gripe aviária e o da varíola dos macacos – que estão circulando ao mesmo tempo que o Sars-CoV-2 e que podem se tornar ameaças no futuro.
“A gripe aviária vive rondando a gente. De uma hora pra outra, você pode ter adaptação [do vírus], e aí vamos ter problemas. A varíola dos macacos deve ficar endêmica – nada indica que não vai ter mais essa doença no rol de doenças endêmicas. A partir do final do ano, provavelmente vai ser mais uma doença que vai ter que lidar”, diz.
O boletim da Fiocruz de 23 de junho sobre síndrome respiratória aguda grave (SRAG) aponta que, neste ano, cerca de 82% dos casos de SRAG foram causados pela Covid-19. Outros 9,3% foram causados pelo vírus sincicial respiratório (VSR), 5,1% pela Influenza A e 0,1%, pela Influenza B.
Nas 4 últimas semanas epidemiológicas, a Covid foi responsável por 81% dos casos de SRAG.
Um outro fator são as subvariantes da ômicron, ainda mais transmissíveis do que ela – que já era mais transmissível que a variante original do coronavírus.
“O que eu vejo é que a gente teve com a ômicron – que tem uma grande capacidade de transmissão –um aumento importante [nos casos] em janeiro, e agora a gente tem variantes da ômicron, que também têm uma capacidade muito grande de transmissão”, diz Waldman, da USP.
Sequelas e medidas preventivas
Um ponto importante para entender os impactos da Covid no país é lembrar que a doença, mesmo que não leve à morte, pode trazer sequelas que afetam a saúde a curto, médio e longo prazo.
“A Covid é uma doença que causa uma tempestade inflamatória, que pode levar a sequelas múltiplas uma parte considerável da população”, reforça Beatriz Klimeck, da Uerj.
“Desde sequelas imediatas como sequelas posteriores – de, meses depois, o seu corpo ter ficado debilitado por conta daquela tempestade inflamatória e, aí, desenvolver alguma coisa. É uma coisa que a gente tá vendo muito – sequelas cardiovasculares, respiratórias”, lembra.
A cientista lembra que, hoje, com a liberação do uso das máscaras na maior parte do país,“não existe barreira entre você e o vírus proposta coletivamente”.
“As pessoas estão saindo do isolamento ainda transmitindo; a gente sabe que elas estão sendo incentivadas a não usar mais as máscaras, a única proteção que a gente tinha. E o vírus tem absoluta liberdade para circular. Para isso virar uma outra variante, mais significativa, mais importante, para isso levar à maior parte da população com sequelas, é muito simples”, avalia Klimeck.
Por isso, diz a pesquisadora, quando a importância de medidas preventivas, testes e isolamento de casos positivos é reforçada, “é porque a gente não vê mais barreiras, infelizmente, para circulação desse vírus“, explica.
“E ele, apesar de ter diminuído imensamente o número de mortes, ainda não é um vírus que não oferece risco para nossa saúde. Pelo contrário: ele continua sendo um vírus muito complexo, que leva a processos complexos dentro do corpo, de inflamação, que a gente ainda nem consegue entender. Então, é sempre importante dizer que a gente não transformou a Covid numa gripezinha“, lembra.
“Seria ótimo se tivesse acontecido, mas isso ainda não aconteceu – e não é porque o número de mortes está lá embaixo, felizmente, por causa das vacinas, que a gente chegou em um momento em que o vírus não é mais perigoso, não ameaça mais a nossa existência”, conclui.
Desigualdade vacinal
A queda na letalidade da Covid, mesmo com o aumento dos casos, também não ocorreu por acaso: a vacinação, que começou em janeiro de 2021, foi sendo ampliada ao longo do ano passado.
Mesmo assim, menos da metade da população brasileira, cerca de 47%, já recebeu a 3ª dose da vacina (primeira dose de reforço). Além disso, a cobertura vacinal varia muito entre os estados .
“Agora, a vacinação não pode ser considerada apenas aquele esquema primário. Dependendo da faixa etária, você tem que ter 3 doses – o esquema primário mais uma dose de reforço –, e, dependendo da faixa etária, você tem que ter o esquema primário e 2 doses de reforço”, reforça a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
A pesquisadora aponta que, apesar de já estar comprovado cientificamente que a 3ª dose aumenta significativamente a proteção, a falta de informação e de comunicação com a população faz com que as pessoas achem que não precisam do reforço.
“E aí [a população] fica mais suscetível a ter uma gravidade maior nessas subvariantes da ômicron, que fizeram tantas mudanças que têm um escape maior das vacinas. Por isso que a dose de reforço é importante”, diz.
Em uma nota técnica divulgada no dia 29, a Fiocruz apontou que a estagnação na cobertura vacinal e a desigualdade entre os estados ameaçam o combate à Covid-19.
Os dados levantados pela fundação mostraram, por exemplo, que a cobertura do esquema primário (duas doses) e até da primeira dose sozinha é menor nas cidades do Centro-Oeste e Norte; nesses lugares, apenas cerca de 50% da população recebeu a primeira dose de reforço.
Já São Paulo, Minas Gerais, Piauí, Paraíba, Bahia e os estados do Sul apresentam maior cobertura. A diferença também foi observada na cobertura de adolescentes de 12 a 17 anos.
A Fiocruz também apontou, no documento, que a estagnação da cobertura vacinal não ocorreu apenas no Brasil.
No Chile, por exemplo, a cobertura com as duas primeiras doses estacionou em 87%; já na África do Sul, o índice é de apenas 32%. Na Coreia do Sul e no Vietnã, a estagnação ocorreu em 81% da população; já Uruguai e Argentina atingiram um platô de cerca de 72% da população vacinada com o esquema primário, e o México, de 57%.
Nos Estados Unidos, cerca de 67% da população recebeu o esquema primário das vacinas. Já no Brasil, o índice da população vacinada com 2 doses ou dose única (esquema primário) é de 78%.
Outros países além do Brasil – incluindo os EUA – enfrentam alta de mortes, como Rússia, Itália e China, segundo o último relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS).
No entanto, Eliseu Waldman, da USP, avalia que é difícil fazer comparações com outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a hesitação e a recusa em se vacinar são consideravelmente maiores do que no Brasil.
“É difícil fazer comparações precisas, porque vai variar muito em função da densidade populacional, do tamanho das grandes metrópoles, da esperança de vida da população, ou seja, da idade média. Por exemplo, a Itália é um país em que a proporção de idosos é mais elevada”, lembra.
Outros fatores que contribuem para variações nos cenários são o grau de desenvolvimento e distribuição da riqueza em um país e o acesso e a qualidade dos serviços de saúde – principalmente da assistência hospitalar para formas graves da Covid.
“E a governança do país”, acrescenta Waldman. “Os países que apresentaram o pior desempenho da pandemia – o pior de todos foi os Estados Unidos, depois veio o Brasil, por motivos semelhantes. Além de todas essas complexidades da pandemia, a governança lá e cá não foi bem. Só que no Brasil você teve uma participação, vamos dizer, positiva, de boa parte dos governantes estaduais e, nos Estados Unidos, nem isso”, avalia.
Fonte: G1