BREVE MANIFESTO DE UMA NOTÍVAGA – 

Gosto da noite, das ruas quase desertas, das luzes amareladas, dos painéis luminosos, do cheiro do escuro, da magia que nasce em todo anoitecer.

Gosto dos poucos sons emitidos e perdidos na amplidão do céu, das madrugadas que turvam as vistas pelas névoas e fumaças criadas pelas sombras da noite.

Gosto de emaranhar pensamentos lascivos pelas ruas e avenidas nuas, despindo-me das carcaças sobrepostas pelo cotidiano. Gosto mesmo é dos reencontros que temos com nós mesmos a cada esquina, avenida cruzada.

Como boa notívaga, amo a vida noturna e seus mistérios, sou bicho da madrugada, sou urbana, gosto do asfalto, dos semáforos, das placas, dos muros pichados.

Gosto de ver a boemia, sentada nos botecos e bares, gosto do copo americano suado, trincando por causa da cerveja gelada, que embalam os corpos quentes ao tímido som extraído da vitrola do barzinho da esquina, que teima em se manter aberto.

A obscuridade traz luz aos pensamentos infames, revelando, como na magia da fotografia, que se revela numa câmara escura com luzes vermelhas, transformando-os, assim como os negativos, em imagens reais, nem sempre verdadeiras, mas, reais.

Gosto da noite cochichando sobre o dia, nos seus mais inusitados relatos, cheios de medos, cismas e preocupações. Nem sempre plausíveis, audíveis, mas, como se diz (ao contrário), onde há fogo há fumaça… onde há loucura há provocação.

A lua dispara gatilhos que o sol insiste em ofuscar. É na noite que os fantasmas aparecem, as lembranças se instalam no quarto escuro e a saudade clareia os vazios da alma conturbada.

Sim, é na noite que se revelam segredos, desejos e amores. Também traz dores, regurgitações e clamores. As orações chegam sem congestionamentos ao seu destino, numa breve súplica, ansiando clemência.

A madrugada tem me acompanhado como uma amiga confidente, emprestando-me seu ombro nas noites de solidão, isto, quando não está abafando os ais, clareados pela lua intrusa que espia pela janela do quarto.

Ah, as madrugadas… penso o que seria de mim sem o breu que me ilumina, do silêncio que me grita, do frio que esquenta minhas ilusões, além do sorriso das estrelas que me traz você e, como esquecer, do sereno que embala meus sonhos.

 

 

 

 

Flávia Arruda – Pedagoga e escritora, autora do livro As esquinas da minha existência, [email protected]

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