CABEÇA DE JUIZ –
Num dos meus artigos, defendi aqui, enfaticamente, a aplicação do princípio da igualdade para além do plano normativo. Para mim, a lei – que deve ser igual para todos – deve ser também, perante o Judiciário, se semelhantes as situações envolvidas, igualmente interpretada e aplicada. Para mim – e acredito que para o cidadão médio também –, nada mais justo que casos semelhantes sejam resolvidos de modo semelhante; ao revés, nada mais injusto que esses casos (semelhantes) sejam decididos, arbitrariamente, de modos diversos. E, para mim, um juiz deve sempre tentar associar a sua decisão, tenha ela o grau de originalidade que for, às decisões que outros juízes tomaram no passado em casos similares. Essa postura, de tratar os casos semelhantes do mesmo modo, é de imensa sabedoria.
Mas há certamente quem se oponha a isso. E esses alegam, com frequência, um tal “princípio da persuasão racional do juiz”, que, levado ao extremo por alguns juízes, lhes dá licença para decidir como querem. Por isso não é sem alguma razão que se diz: “De cabeça de juiz, de barriga de grávida e de bunda de neném, nunca se sabe o que vem”.
Acontece que essa visão refratária à igualdade – e, por consequência, também à estabilidade e à previsibilidade do direito – é de uma falta de pragmatismo inconcebível, pois, em prol de um suposto livre convencimento do juiz, joga fora todos esses valores (igualdade, estabilidade e previsibilidade). E, além de ser uma visão romântica e irreal, ela também é contrária ao interesse público. Indaga-se: há algum interesse público em fomentar a rebeldia ou as diferenças de tratamento em processos com questões fáticas e/ou de direito semelhantes? Claro que não. A quem serviria essa “mitológica” liberdade de convencimento? A pouquíssimos, a algumas vaidades no Judiciário e no Ministério Público e a alguns advogados mais espertos (não vai nenhuma crítica às classes como um todo, por óbvio).
É claro que não se deseja tirar dos juízes o seu livre convencimento motivado. E muito menos transformar suas decisões numa simples mecânica de aplicar a lei ou um precedente ao caso em julgamento. Até porque, sei muito bem, isso é impossível. A atividade judicial nunca se reduz a uma simples operação lógica neutra, de verificar se os fatos do caso se subsumem numa hipótese legal ou num precedente e, assim, proferir uma sentença/solução (num silogismo em que a premissa maior é a lei/precedente, a menor é o fato e o corolário é a sentença). Outros fatores – fatores psíquicos e interesses os mais variados – sempre entram nessa equação.
O que se deseja é evitar que esse livre convencimento vire arbitrariedade (leia-se: independência sem controle). Quer-se impedir, na medida do possível, que a sorte dos litigantes fique ao sabor das frequentes mudanças das composições dos tribunais e das mudanças de entendimento disso decorrentes (o que é muito comum hoje no Brasil, criando-se discursos escancaradamente contraditórios), que fique ao sabor da simples distribuição do feito a esse ou aquele órgão julgador ou, o que é ainda pior, que fique ao sabor da vaidade ou da idiossincrasia infrutífera do juiz de um caso. Apenas isso.
É importante também deixar claro que não se quer impor aos juízes e aos tribunais amarras que lhes tolham a possibilidade de futuramente enxergar o direito de uma maneira nova, toda vez que o entendimento comumente adotado já se mostre superado pelos inevitáveis câmbios sociais. De modo algum. Se o direito deve tender à estabilidade, ele não pode ser inalterável. Devemos procurar conciliar essas duas realidades contraditórias: estabilidade e transformação. Achar uma fórmula que consiga conciliar um corpo de direito fixo, que não permita diferenciações discricionárias, com as ideias de transformação, desenvolvimento e criatividade. Essa, sim, seria uma regra de ouro.
Houve um tempo – aliás, curiosamente, bem antes da criação de instrumentos como a súmula vinculante, a repercussão geral ou o recurso especial repetitivo – em que os ministros do Supremo Tribunal Federal também pensavam assim, como eu penso. E eis uma história, que parece quase uma anedota, contada por Francisco Rezek, quando ainda Ministro do STF, que bem ilustra o mal dessa super “licença” para decidir: “Houve uma época – membros mais antigos deste Tribunal o recordam – em que determinado Tribunal de Justiça, numa prestigiosa unidade da Federação, dava-se crônica e assumidamente a desafiar a jurisprudência do Supremo a respeito de um tema sumulado (um tema, por sinal, menor: a representatividade da ofendida em caso de crime contra os costumes). O Supremo tinha posição firme, constante e unânime a respeito, e certo Tribunal de Justiça, porque pensava diferentemente, dava-se à prática de decidir nos termos de sua própria convicção, valorizando a chamada ‘liberdade de convencimento’, própria de todo juiz ou tribunal. Resultado: todas essas decisões eram, mediante recurso, derrubadas por esta casa. Aquilo que deveria acabar na origem, à luz da jurisprudência do Supremo, só acabava aqui, depois de um lamentável dispêndio de recursos financeiros, de tempo e de energia, num Judiciário já congestionado e com tempo mínimo para cuidar de coisas novas. E quando acontecia de a jurisprudência do Supremo acabar não prevalecendo, e de a decisão do tribunal rebelde encontrar seu momento de glória? Quando o réu, porque assistido por advogado relapso, ou porque carente de outros meios, não apresentava recurso… Só nessa circunstância a infeliz rebeldia contra a jurisprudência do Supremo dava certo. Com todo respeito pelo que pensam alguns processualistas, não vejo beleza alguma nisso. Pelo contrário, parece-me uma situação imoral, com que a consciência jurídica não deveria, em hipótese alguma, contemporizar (trecho do seu voto na Ação Declaratória de Constitucionalidade 1-1/DF, Relator Ministro Moreira Alves, julgamento em 27.10.1993, publicação da decisão no DJ de 16.06.1995).
Esse era o Supremo Tribunal Federal de Moreira Alves e Francisco Rezek. Mas as cabeças mudaram. Inclusive no STF. E, nesse ponto, com certeza, não foi para melhor.
Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP