Cannabis medicinal foi recuperada por Bruno Vanderlei  — Foto: Cedida
Cannabis medicinal foi recuperada por Bruno Vanderlei — Foto: Cedida

A “maconha gourmet” importada dos Estados Unidos e que foi apreendida pela Polícia Federal em uma inspeção de rotina nos Correios em Natal no mês de maio era, na verdade, cannabis medicinal para tratamento de um paciente potiguar e tinha autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importação e uso.

Os produtos – cerca de 35 gramas de flor de cânhamo e dois frascos com óleo de cannabis – foram apreendidos no dia 22 de maio no Centro de Tratamento de Cartas e Encomendas dos Correios em inspeção que teve auxílio de um cão farejador.

Dezessete dias após a apreensão, em 8 de junho, o geólogo Bruno Vanderlei, de 35 anos, conseguiu recuperar os produtos na sede da Polícia Federal, com o auxílio de um advogado, que apresentou as autorizações. O g1 teve acesso à documentação que comprova a legalidade do material.

A Polícia Federal explicou que a apreensão foi feita porque “a maconha foi encontrada numa encomenda durante fiscalização de rotina, seguindo os padrões, junto com órgãos parceiros, desacompanhada de qualquer documentação que comprovasse a sua legalidade”.

Segundo órgão, os documentos que autorizavam a importação e o uso da cannabis medicinal não estavam anexados nos produtos e foram apresentados após a apreensão. Os produtos, no entanto, já haviam passado por fiscalização da Anvisa e da Receita Federal, no Brasil.

“Apresentei os testes de parametrização enviados pela empresa, referente aos produtos apreendidos, para comparação com os resultados da perícia. Após a constatação da perícia de que tudo condizia com a documentação apresentada, a polícia restituiu a mercadoria apreendida”, explicou o advogado Gabriel Seabra, que representou Bruno.

Tratamento contra depressão e ansiedade

 

Bruno faz tratamento contra depressão e ansiedade há quase uma década e pela primeira vez teve a cannabis medicinal receitada contra as doenças pela atual médica psiquiatra.

“Tratamento no ansiolítico e antidepressivo você faz já com prazo de validade, teoricamente. Sabe que está tomando esses remédios, mas é prejudicial. Eu fazia o tratamento, melhorava, parava, tinha crise e voltava. Fiquei muito tempo assim”, explicou em entrevista ao g1.

O geólogo explicou que trocou de psiquiatras e mudou medicamentos ao longo do tempo, mas não viu o resultado esperado, até que buscou um tratamento com cannabis medicinal após uma crise de ansiedade quando trabalhava na Bahia.

“Foi uma indicação após eu ver as pessoas melhorarem bastante, de ler, de ouvir, de ver no Youtube, de ver reportagem, assistir na televisão. Em todo canto eu pesquisei. Minha mãe tem início de fibromialgia, tem hérnia, eu já vinha pensando até em uma forma de tratamento para ela também”, contou.

Presidente da Associação Reconstruir Cannabis, que reúne e auxilia pacientes no tratamento terapêutico com a cannabis no Brasil, e também fundador da Delta9, fórum que debate o uso da cannabis medicinal no país, Felipe Farias explica que alguns profissionais da saúde levam consigo preconceitos e estigmas e por vezes evitam a indicação do medicamento.

“Esse é o primeiro problema do paciente: chegar num profissional de saúde que já tenha experiência com a cannabis como ferramenta terapêutica. Muitas vezes esse profissional ou não sabe sobre o assunto ou tem muito preconceito por não ter estudado, então inviabiliza o tratamento do paciente, às vezes até desencoraja a buscar essa terapia”, explicou.

O medicamento foi, então, prescrito pela médica psiquiatra, com a quantidade, a marca e o tempo de tratamento. Tudo isso é necessário ser informado no site da Anvisa, o que foi feito por Bruno. Após esse passo de análise da Anvisa, a importação do medicamento foi autorizada para o paciente.

No documento, é citado que “a autorização é válida por 2 anos, e dentro deste período o paciente está autorizado a importar a quantidade de produto definida por prescrição”. “Quando entra no Brasil, passa por todo o procedimento: polícia, alfândega, o próprio Ibama”, contou Bruno.

Apreensão

 

Bruno conta que acompanhava o transporte do produto pela internet, mas em determinado momento percebeu uma demora na entrega. Foi quando foi avisado por um amigo que viu a notícia da apreensão da cannabis medicinal e perguntou se a encomenda poderia ser a dele.

O geólogo disse que não foi notificado pela Polícia Federal e precisou ir atrás para explicar a situação. “Como foi apreendido, foi aberto um inquérito. E naquilo ali eu entendi que pudesse ser que abrisse até um processo criminal”, explicou.

O advogado contratado por Bruno, Gabriel Seabra, foi até a Polícia Federal, com uma procuração, para defender o geólogo e explicar o ocorrido. “Bruno corria o risco de ir à superintendência da PF para pedir a restituição da mercadoria e ficar detido. Portanto, eu fui sozinho e apresentei um pedido de restituição”, explicou o advogado.

Gabriel disse que foi bem recebido na Polícia Federal e a situação logo se resolveu. Segundo o advogado, no entanto, não foi explicado a razão da apreensão no momento.

“Quando fui até a PF, o delegado se surpreendeu porque não sabia que já era possível o uso medicinal de flores de cannabis no Brasil. Então, a apreensão pode ter sido por desconhecimento das novas regulamentações da Anvisa, por erro da polícia”, disse.

A apreensão equivocada poderia ter prejudicado Bruno, acredita o advogado, já que a PF chegou a informar que apurava a prática do crime de tráfico de drogas.

“O erro pôs em risco a liberdade de Bruno, pois o uso da cannabis pode ser considerado um fato típico, desde que não seja previamente autorizado pela Anvisa”, disse.

“Se Bruno fosse acusado de tráfico de drogas, não apenas sua liberdade estaria em jogo, mas também sua imagem perante a sociedade. Bruno poderia perder emprego, ser alvo de alguma violência nas ruas”, pontuou.

O presidente da Associação Reconstruir Cannabis, Felipe Farias, lembra que já houve outros casos semelhantes no Brasil em que os produtos legais foram apreendidos pela polícia.

“Era mais um remédio como outro qualquer, só que por falta de conhecimento, de uma conversa dentro dos órgãos estatais, esse desconhecimento, acaba atrapalhando o tratamento em alguns pacientes, como foi o caso do Bruno, em que foi adiado. É um paciente que já tem uma necessidade de uma certa urgência de começar o tratamento”, disse.

Acesso à informação

 

Felipe Farias explica que nos últimos anos houve um avanço para que o paciente consiga importar a cannabis medicinal, inclusive na parte burocrática, com as autorizações da Anvisa sendo enviadas de forma on-line e com mais rapidez. Apesar disso, o tratamento segue caro. “Nem todo paciente tem condições financeiras de custear um tratamento com cannabis”, explicou.

O presidente da Reconstruir Cannabis e fundador da Delta9 acredita que a falta de acesso à informação sobre a cannabis medicinal fez o produto apreendido pela PF ser taxado de “gourmet”.

“A gente achou isso de uma maneira muito pejorativa. Por não ter averiguado qual era o produto em si. E o produto, o óleo, sublingual, foi categorizado para ser um produto vaporizado. Existia um desconhecimento do produto em si. O óleo que foi enviado não tem como ser vaporizado. Então, existe um desconhecimento ainda muito grande de alguns órgãos”, disse.

De um ponto de vista mais urgente, Felipe avalia que é preciso que o Estado promova ações que permitam o acesso à informação sobre o uso da cannabis medicinal não só aos profissionais de saúde, mas também para agentes de segurança e outras áreas.

“A gente pode encontrar pacientes com casos mais graves ainda, com certa urgência, e terão os tratamentos mais uma vez adiados por questões de desinformação de alguns órgãos”, fundamentou.

Além disso, a avaliação dele é que o debate precisa se expandir para a sociedade em geral, já que ela carrega preconceitos sobre o uso da cannabis que são enraizados.

“Foram preconceitos baseados em pseudociência. Muitos até hoje acreditam que maconha queima neurônio, por exemplo, que pode causar esquizofrenia. São tantos mitos causados ao longo desses anos, que hoje é um dever do Estado e das mídias informar de fato à população sobre esses usos medicinais, quais são os benefícios, quem de fato é um grupo de risco pra esses produtos. E não causar mais esterióripos em relação à planta”, explicou.

A associação que ele é presidente atualmente, a Reconstruir Cannabis, busca fomentar a educação através de palestras, cursos, orientação de profissionais. Felipe vê que, por vezes, existe uma resistência inclusive dentro das famílias, mesmo que a cannabis medicinal possa levar a uma evolução do quadro de um paciente.

“Dentro da família existe o preconceito. ‘Como vou dar maconha pro meu filho, pro meu pai?’. Então existe muito o esteriótipo, muito medo ainda sobre o produto, muito desconhecimento. E o desconhecimento gera um preconceito, que gera uma falta de acesso”, pontuou.

“Nem todo mundo pode utilizar. Cannabis não é uma panaceia, não serve pra tudo. Não se pode também romantizar a planta. Existe quem vai se beneficiar e existe seus grupos de risco, suas contraindicações. Então, é um papel hoje da associação poder promover essa educação de forma séria e mais ampla possível”.

Fonte: G1RN

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