CARDOZO, O DIREITO E A LITERATURA –

Já faz muito tempo, eu escrevi aqui sobre Benjamin N. Cardozo (1870-1938), que foi juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e um dos maiores juristas que aquele país produziu. Na oportunidade, tratei essencialmente do Cardozo “jusfilósofo” e da sua concepção quanto ao papel do juiz na formulação do direito. Tratei do Cardozo das aulas na Yale University, depois publicadas com o título “The Nature of Judicial Process” (Yale University Press, 1921), obra que virou um clássico. Do Cardozo que afirmava: “fácil é explicar, em teoria, a interpretação da lei ou a evolução histórica do common law; difícil é explicar como os juízes, efetivamente, decidem os casos postos ao seu conhecimento”.

Para quem não sabe, Benjamin Nathan Cardozo nasceu na cidade de Nova York em 1870. Seu pai foi também juiz, infelizmente implicado em um caso de corrupção durante a infância de Cardozo (o que, sugere-se, influenciou a vida do futuro jurista, que trabalhou com afinco para “restaurar” o nome da família). De origem judia e luso-espanhola, sua família tinha certa tradição e boa condição financeira. Cardozo, assim, na sua juventude, foi educado por tutores particulares, entre eles o escritor Horatio Alger (1832-1899, famoso por seus romances para jovens). Ingressou na Columbia University. Estudou na School of Law dessa famosa instituição e, mesmo sem terminar o curso, ingressou na Ordem dos Advogados de Nova York (New York Bar) em 1891 (o que, supõe-se, era permitido à época). Exerceu a advocacia até 1914, sendo sobretudo um “advogado de advogados, a quem estes procuravam ou indicavam para os casos difíceis”, registra Bernard Schwartz em “A History of the Supreme Court” (Oxford University Press, 1995). Nesse ano (1914), tornou-se juiz da New York Court of Appeals, onde ficou por dezoito anos, sendo cinco como “Chief Judge”. Além do já citado “The Nature of Judicial Process” (1921), Cardozo escreveu, conforme lembra G. Edward White em “The American Judicial Tradition: Profiles of Leading American Judges” (Oxford University Press, 2007), pelo menos duas outras importantes obras, “The Growth of Law” (1924) e “The Paradoxes of Legal Science” (1927), ambos também resultado de aulas dadas, em que refina o seu pensamento. Indicado pelo Presidente Herbert Hoover (1874-1964), Cardozo chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos da América em 1932, sem a aprovação unânime do Senado americano, mas com os aplausos – e mesmo o apelo – de toda a comunidade jurídica do país. Sucedeu nada menos que Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935); foi sucedido por Felix Frankfurter (1882-1965), outro grande juiz. Foi relator de inúmeros e importantes casos durante toda a sua carreira como magistrado. Ficou na Suprema Corte dos EUA até 1938, ano em que também faleceu.

Como anota o já citado Bernard Schwartz, talvez com exceção de Oliver Wendell Holmes Jr., o “Justice Cardozo foi o mais importante juiz da primeira metade do século XX [americano]”. Um artesão do direito, mestre dos princípios e das técnicas, a maior contribuição de Cardozo para o direito americano foi, segundo o mesmo autor, o “uso de técnicas judiciais tradicionais para adaptar o direito a uma sociedade que necessitava de mudanças. Para Cardozo, a função do juiz era adaptar a experiência do passado de forma que servisse melhor às necessidades do presente. Mais do que qualquer outro juiz, ele mostrou como a técnica do common law poderia ser adaptada para o uso contemporâneo. Raciocinando por analogia, ele mostrou como as doutrinas existentes poderiam ser adaptadas às novas necessidades. Sua maestria na técnica judicial fez com que o direito emergente parecesse ser o produto lógico de doutrinas estabelecidas; em sua mãos, o novo common law foi feito de uma mistura tanto de continuidade como de criatividade”.

Hoje, entretanto, vou lembrar de uma outra faceta da vida jurídica de Cardozo: a interação que ele buscou fomentar entre o direito e a literatura.

De fato, Benjamin N. Cardozo também foi, seguindo a trilha aberta por John Henry Wigmore (1863-1943), autor das famosas listas de “Legal Novels” (publicadas sucessivamente em 1900, 1908 e 1922, pelo menos) e sobre quem recentemente escrevi aqui, um dos precursores do movimento “Direito e Literatura” (“Law and Literature”). Foi o seu artigo “Law and Literature”, publicado em 1925 na The Yale Review, direcionado ao estudo do “direito como literatura” (“law as literature”, “le droit comme littérature”), que definitivamente pavimentou, para os que viriam a seguir, o caminho e a aventura de misturar, interdisciplinarmente, nos EUA, esses dois ramos do conhecimento humano. Nesse ensaio de 1925, Cardozo privilegiou o lado criativo e imaginativo dos juízes, além de tratar o ato de julgar sob um enfoque estilístico. Nesse último caso, tratando as sentenças judiciais como exemplos de literatura, ele examinou a qualidade literária do texto jurídico. Curiosamente, tanto Wigmore como Cardozo nadaram contra a corrente pós-industrial da época, notadamente pragmática e comercial, que levava os juízes a despersonalizarem-se e os advogados a especializarem-se, sacando do direito os seus importantes vínculos com os valores, o estilo e a imaginação.

Assim, segundo explica Richard Weisberg, no artigo “Derecho y Literatura en los Estados Unidos y en Francia. Una primera aproximación”, que se acha no livro “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (título original em francês: “Imaginer la loi: Le droit dans la Littérature”, organizado por Antoine Garapon e Denis Salas, e publicado pela Editorial Jusbaires na Argentina, com o apoio do Poder Judicial de la Ciudad de Buenos Aires/Consejo de la Magistratura, em 2015), tanto Wigmore como Cardozo devem ser vistos como “profetas de uma nova época ciceroneana [em referência ao grande jurista romano Marco Túlio Cícero, 106-43 a.C.], muito mais interessante que a da geração deles. Eles tiveram a intuição de considerar o vínculo entre direito e literatura como uma necessidade para a ‘formação’ dos juízes”.

Bendito seja Wigmore; bendito seja Benjamin N. Cardozo.

 

           

Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República, Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e Mestre em Direito pela PUC/SP

As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *