Se hoje o Carnaval parece parte natural e essencial do que o Brasil efetivamente é – como uma utopia encarnada da alegria e do convívio que somos e sonhamos ser – houve um tempo não muito distante em que a festa simplesmente não existia, ou acontecia somente com a timidez e o recato dos bailes europeus.
Em meados do século 17 os primeiros bailes de máscara já eram registrados em solo brasileiro, mas o Brasil só foi se tornar Brasil de fato – ao menos na perspectiva carnavalesca – no século 19, quando as primeiras festas de rua começaram a acontecer.
Da Bahia para o Rio
O samba nasceu na Bahia, mas logo foi para o Rio, e se desenvolveu. O primeiro “Rancho carnavalesco” – que daria origem, anos depois, aos blocos e às escolas de samba – foi o Reis de Ouro, fundado em 1893 no Rio de Janeiro pelo pernambucano Hilário Jovino Ferreira como uma derivação da festa da Folia de Reis. O Reis de Ouro apresentou novidades que até hoje permanecem, como a ideia de enredo, o uso de instrumentos de corda e de instrumentos africanos, como pandeiros, tantãs e ganzás, e o casal de mestre-sala e porta-bandeira. Por mais que o samba e as festas de rua fossem criminalizados, as autoridades gostaram do Reis de Ouro, e no ano seguinte à sua fundação o rancho chegou a desfilar diante do presidente Deodoro da Fonseca.
O apreço do presidente não tirou os desfiles da marginalidade, e Hilário foi preso algumas vezes. Ele seria, em verdade, um dos compositores “de verdade” do dito “primeiro samba”, o seminal Pelo Telefone, de autoria atribuída somente a Donga, mas que teria em Hilário, em Sinhô e em Tia Ciata seus outros compositores.
Em 1889, acontecem os primeiros registros de blocos autorizados pela polícia – entre eles, o Grupo Carnavalesco São Cristóvão, Bumba meu Boi, Estrela da Mocidade, Corações de Ouro, Recreio dos Inocentes, Um Grupo de Máscaras, Novo Clube Terpsícoro, Guarani, Piratas do Amor, Bondengó, Zé Pereira, Lanceiros, Guaranis da Cidade Nova, Prazer da Providência, Teimosos do Catete,Prazer do Livramento, Filhos de Satã e Crianças de Família. Em 1918, o mais antigo bloco ainda em atividade do Rio de Janeiro é fundado: o Cordão do Bola Preta, até hoje um dos maiores e mais populares da cidade e do mundo.
Samba com sotaque paulistano
Em 1914 o Carnaval também já era popular em São Paulo, e foi nesse ano que Dionísio Barbosa, que havia morado no Rio e conhecido os primeiros ranchos cariocas, funda o Grupo Carnavalesco da Barra Funda, conhecido como o primeiro bloco da capital paulista.
O Cordão viria a se tornar a Camisa Verde e Branco, até hoje uma das maiores escolas do carnaval paulista. Em 1947 seria fundado o Bloco Esfarrapado, que é hoje uma espécie de Bola Preta de São Paulo, como o mais antigo bloco ainda em atividade da cidade.
E, então, vieram as escolas de samba
Em 1928, no Rio, a Deixa Falar surgiu para se tornar a primeira Escola de Samba do Brasil, diferenciando-se dos blocos, que já existiam. Seus membros ensinavam para a população e difundiam o samba de cada ano, e o desfile visitava outros bairros a fim de popularizar a agremiação.
Fundada e batizada no bairro do Estácio pelo imenso Ismael Silva, junto de outros grandes sambistas como Bidê e Marçal, o sucesso da Deixa Falar – que viria a se tornar a Estácio de Sá – serviu como estímulo para a fundação de outras escolas ainda na virada dos anos 1920 para os anos 1930, como a Cada Ano Sai Melhor, Estação Primeira (Mangueira), Vai como Pode (Portela), Vizinha Faladeira e Para o Ano sai Melhor.
O Carnaval só seria reconhecido, oficializado e autorizado pelas autoridades cariocas, porém, em 1935, através de um decreto do prefeito Pedro Ernesto. A essa altura as escolas já eram populares, a tal ponto que o jornal Mundo Esportivo, editado pelo jornalista Mário Filho (irmão de Nelson Rodrigues e que batiza hoje oficialmente o estádio do Maracanã) organizou, em 1932, o primeiro desfile competitivo de escolas de samba, vencido pela Mangueira. A Deixa Falar decidiu não participar da competição.
Não podemos deixar de falar de Olinda e de Salvador
O Carnaval não se restringe ao Rio e a São Paulo, e também no início do século, por volta de 1907, nascia o que hoje ainda é uma das festas mais tradicionais e grandiosas do país: em Olinda, tinha início o Carnaval da cidade através do Clube Carnavalesco Misto Lenhadores e, em 1912 do Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas – já trazendo o frevo como característica do Carnaval pernambucano. Os bonecos de Olinda apareciam pela primeira vez em 1932, com o aparecimento do “Homem da Meia-Noite” na festa.
O Vassourinhas seria fundamental no nascimento de outra marca fundamental do Carnaval brasileiro: o surgimento dos trios-elétricos em Salvador.
Foi vendo um desfile do Vassourinhas com uma banda de fanfarra pelas ruas de Salvador, diante da animação que contagiou o povo baiano no ano de 1950, que Dodô e Osmar decidiram subir em um carro, ligar um violão e um protótipo de guitarra na bateria do automóvel e tocar frevo pela cidade.
O arremedo de trio incendiou o povo, e em 1952, através de um patrocínio, a dupla elétrica já estava em um carro maior – no ano seguinte, em 1953, com o surgimento de outros grupos, o termo “Trio Elétrico” se consolidaria.
A marca da marginalização e perseguição policial ficou para trás, e hoje o Carnaval é, em todo o país, além de uma verdadeira indústria, uma festa de dimensões gigantescas. Que o diga o Galo da Madrugada, bloco fundado no Recife em 1978, que disputa com o carioca Bola Preta o título de maior bloco do mundo. Em 2012, ambos os blocos teriam reunido cerca de 2,5 milhões de pessoas, mas o reconhecimento oficial é do Galo, que ostenta seu nome no Livro dos Recordes do Guinness.
Mas o Carnaval não precisa ser imenso para ser alegre, e também é composto dos pequenos blocos, das bandas amadoras, dos foliões solitários e das festas espontâneas – é feito, de fato, da alegria que se torna senhora do país enquanto reina a folia. Entre a metáfora e o destino, a utopia e a essência do país, o Carnaval, em especial a festa de rua, parece sim propor a alegria e o convívio cutâneo como alternativas viáveis, possíveis e transformadoras para as mazelas que tanto nos endurecem enquanto povo, em festas por todo o país, como uma bandeira nacional encarnada do que o Brasil de fato é e/ou poderia ser – ao menos até chegar a quarta-feira.
Fonte: Hypeness.com