CASCUDO, BARROSO E “MUNDO DOS CORONÉIS” –
O livro “Mundo dos Coronéis”, do decano jornalista Antônio Barroso Pontes, é uma obra literária de especial valia: o Brasil estampado pelo Nordeste. Um estilo despreocupado com a corrida de quem quer aparecer mais rápido. O autor da obra, a esta altura já engrandecida pela opinião pública, soube escrever e administrar o futuro do seu primeiro trabalho. Deus esteve sempre presente, e Barroso é quem afiança, a começar com o prefácio de Luiz da Câmara Cascudo, um dos maiores nomes da literatura brasileira, não obstante nunca ter saído de Natal, é uma expressão cultural de conceito internacional. Anota Câmara Cascudo no prefácio:
“Conheci Antônio Barroso Pontes em Natal, delegado de Polícia e depôs chefe da Polícia da Base Aérea de Parnamirim, durante os primeiros e últimos anos de guerra. Nesse tempo, o Secretário de Segurança e Comandante da Polícia Militar era o capitão André Fernandes de Souza, comissionado coronel da Polícia Militar do Rio Grande do Norte. De velha e limpa família sertaneja, André seguiu a carreira militar e chegou ao generelato do Exército, não na carreira, mas em marcha regular e segura de soldado aos altos postos, estudando, sofrendo, sonhando. Nenhuma criatura neste mundo é superior a André no plano do caráter, honestidade, brio, dedicação, capacidade realizadora, simplicidade. Ser digno de confiança de André era uma credencial, carta de recomendação, passaporte de dignidade; Antônio Barroso Pontes pertenceu a esse número”.
Á volta da Base Aérea de Parnamirim nascia uma povoação com a velocidade, tumulto, confusão de um acampamento de ciganos. Chochicholos de barros e palha, barracões de folhas de zinco enferrujadas, choupanas de palma de coqueiro surgiram da terra na irregularidade de um desenho espontâneo, plantados ao sabor da predileção sitiante. Depois, com a guerra em 1942, vieram os norte-americanos para o Parnamirim-Field, erguendo uma cidade com os edifícios incontáveis e o relativo conforto da eletricidade e da fartura inesgotável. Ao lado do mundo norte-americano em luta, ninho de aviões que voavam sobre o Atlântico para a África, Europa, Ásia e estava a seção técnica, rasgando a rodovia Parnamirim – Natal, a pista asfaltada, e furando a terra para o oleoduto, indispensável á potência motora.
Milhares de homens foram empregados. Milhares de “espertos”, aproveitados, “sabendo virar-se” nas mais incríveis malandragens, vieram também atraídos pela fama da abundância sem fim. Essa fauna, sem participação produtora, gravitava ao derredor da curiosidade norte-americana, explorando-a cinicamente, estimulando as prodigalidades, criando um clima inflacionário de exaltação aquisitiva. Antônio Barroso Pontes foi o represador desses pequeninos dilúvios atrevidos e avassaladores. Conter a força ambiciosa que se julga legitima em face da presa generosa e fácil é milagre de audácia. Foi quando surgiu a figura do marreteiro, vendedor de inutilidades irresistíveis, doutor em todas as barganhas capciosas, oferecendo objetos em que ia perder dinheiro, confidenciado origens misteriosas e sedutoras para as peças oferecidas “somente amigos”. Normalmente o comprador era uma vitima sem remédio, acreditando na lábia e no choro do vendedor e, psicologicamente, ciente de ter enganado o marreteiro, invencido e invencível.
Parnamirim povoação não ficou “favela” graças ao brigadeiro Eduardo Gomes. Comprou as barracas e mandou queimar a parte desconexa do acampamento. Nasceu Parnamirim que foi vila e hoje é cidade, sede de município. Barroso multiplicou-se nessa arca de Noé onde as pulgas derrotavam os elefantes e o macaco imobilizava o tigre, ondulante e magnético. Naturalmente o malandro, o marreteiro, “o pobre que precisava ganhar sua vida”, o dizendo por que meios, odiavam-no. Ameaçavam-no de morte, de surra, de desacato, de seqüestro, do fogo do inferno. Tranqüilo, cortês, revolver à cinta, Barroso escapou de todo nevoeiro assombroso e Parnamirim viveu, clara e nobre, para os nossos dias”.
Menino de Itapipoca ao pé da serra de Uruburetama,cearense de face imóvel e dois olhos de corisco, inquieto, valente, maneiroso, grande companheiro. Neste livro, conta sua vida e pensamento na estrada caminhada trinta e seis anos, desde 1924, quando caçava marrecas e atravessava rio agarrado ao rabo de uma vaca. Vereis, amigo, uma vida vivida sob os ventos soltos do trabalho teimoso. O pai queria faze-lo militar e a mãe desejava vê-lo padre. Nem uma coisa nem outra. Barroso foi jornalista, estudioso social, vigilante devoto da campanha municipalista. Formou-se em Direito com 39 anos.
O autor que fez caçada a tiro, derribando onça, juriti na baladeira, corrupião com armadilha. Brigou de revólver e de faca. Prende ladrões, dominou assaltantes. Comandou “retirantes” em 1932. Foi perseguido pela polícia do Ceará e persona grata na polícia do Rio Grande do Norte. Amigo de ministros de Estado, escritores, industriais, políticos. Cavalheiro emérito, homem afoito, enamorado do espírito cultural, evoca a paisagem que desapareceu no tempo, as doces fisionomias familiares, os colegas da escola, Zuca Molóide que apanhou com surras e José Fortunato do “Maracujá”, o maior jogador de cacete do Ceará. Viajou léguas e léguas a pé para desafiar o capitão Sampaio, da Serra Branca, a um duelo singular em que foi derrotado. Barroso evoca essas existências reais e lindas veracidades documentárias de força emocional do Brasil matuto e caboclo. Mas o jornalista não podia dispensar a contemporaneidade dos assuntos atuais. E assim, o livro recebe as águas dos rios perenes do municipalismo, da política, da administração, o ambiente do Nordeste onde Barroso é expressão legítima no periodismo profissional.
Aqui estão as marcas de sua viagem a este Mundo dos coronéis, cuja reedição significa o verdadeiro conhecimento dos valores nordestinos. Observação, acuidade, crítica, coragem de afirmar, vivacidade de refletir, induzir os valores jornalísticos de apreender os motivos, com rapidez, e transmiti-los no mesmo plano de interesse comunicante. Este é um livro de testemunho, informação, história de atitudes. Como Montaigne, o autor pode dizer, sereno: “Je suis moi meme lê matière de mon livre…”.
O livro foi inicialmente publicado, em 1970, pela revista O Cruzeiro, que tinha circulação internacional. A orelha é de Virginius da Gama e Melo, um dos maiores valores como crítico literário da Paraíba. Logo após o lançamento, vieram apreciações das mais elogiosas como as de José Américo, Parsifal Barroso, Juarez da Gama Batista, Otacílio Cartaxo, Costa Porto, Osmundo Pontes, Girão Barroso, Nelson Lustosa Cabral, Luiz Pinto e do grande escritor potiguar Raimundo Nonato da Silva.
José Adalberto Targino Araújo – Advogado e professor, Presidente da Academia de Letras Jurídicas/RN e membro do Instituto Histórico Geográfico/RN
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