“Ele me tirou de casa à força, me puxou pelo braço e me levou para o mato. Eu não queria falar com ele. Levei um soco no olho e ele mandou eu abaixar a cabeça. Eu não queria, mas ele me pegou pelo braço e me forçou. Então, com uma faca, ele cortou meu couro cabeludo. Eu achava que iria morrer, chorava bastante. Implorei para ele não fazer aquilo comigo, mas ele não deu ouvidos. Desmaiei de tanto sangue, de tanta dor. Depois, não lembro mais de nada”.
As palavras acima foram difíceis de falar. Houve pausa, silêncio, lágrimas. Houve indignação, revolta e medo… muito medo. O nome ela prefere não revelar, mas a dor vem com detalhes. São de uma jovem dona de casa de 24 anos. Os últimos 9 foram ao lado dele, do agressor, e boa parte vivida em meio à violência doméstica – uma violência que preocupa cada vez mais.
No Rio Grande do Norte, apesar de os casos de assassinatos de mulheres mostrarem uma redução de 37,5% nos últimos dois anos, os números de denúncias de ameaças e agressões físicas registrados pela Coordenadoria de Defesa das Mulheres e das Minorias (Codimm) – órgão vinculado à Secretaria de Segurança e Defesa Social (Sesed) aumentaram 5,4% neste mesmo período.
Também houve aumento no número de medidas protetivas nos últimos dois anos. Segundo o Tribunal de Justiça do RN, em 2017 foram expedidas 1.936 ordens judicias contra agressores, e em 2018 foram 2.598 – um crescimento de 34%.
O escalpelamento aconteceu no dia 25 de janeiro, na zona rural de Ceará-Mirim, cidade da Grande Natal. Segundo a jovem, inconformado com o fim da relação, o companheiro da vítima invadiu a casa onde ela estava, junto com familiares, e a arrastou pelo braço para dentro de um matagal. Lá, com uma faca, o homem arrancou o couro cabeludo da mulher. De tanta dor, ela diz ter desmaiado, e só lembra de já ter acordado no hospital. O agressor foi preso poucos dias depois, e deve ser indiciado por tentativa de feminicídio.
A dona de casa ainda se recupera. Sem metade do couro cabeludo, ela precisou passar por cirurgia. Pele de uma das coxas foi retirada pra fazer enxerto. Foram 24 dias internada, dois deles na UTI. E ela sabe que o cabelo arrancado não vai mais crescer.
Mas, ainda segundo a própria jovem, a falta do cabelo é o de menos. A preocupação dela é com o futuro, em se manter viva, e com a família. “O mais importante é que eu tô viva e tenho meus filhos ao meu lado. Só os meus filhos me dão força de vencer e de ser uma outra mulher. Tenho vontade de ir para longe e de começar outra vida, mas não tenho condições”, acrescentou.
Ainda sobre o ex-companheiro, a jovem contou à polícia que ele chegava em casa quase sempre agressivo e que batia nela. “Ele bebia e usava drogas. Muitas vezes me batia na frente das crianças. Eu não gostava mais dele. Dei queixa dele, mas ele não foi preso. Agora, vivo com medo de soltarem ele e ele me procurar e me matar. Ele disse que onde eu estiver vai me achar e me matar aos poucos. Não me sinto segura com a medida protetiva. Isso não vai manter ele longe de mim. Ele não respeita nada”, disse.
Karen Lopes, delegada de Ceará-Mirim, falou sobre a violência sofrida pela dona de casa. Em entrevista ao G1, ela disse que vai indicar o agressor por tentativa de feminicídio. “Ele teve a intenção de matá-la. Tanto que ele expressou isso por diversas vezes. Depois de escalpelar a companheira, continuou fazendo ameaças. Disse à família dela que iria matá-la, arrancando dela pedaço por pedaço, e que iria terminar aquilo que ele começou”, revelou.
Sobre questão da violência doméstica, a delegada conta que muitas mulheres procuram a delegacia dizendo que os parceiros não aceitam o fim da relação, e que isso acontece quase que todos os dias. “Nós vemos isso diariamente. A insatisfação pelo término de uma relação gera uma situação que pode culminar em violência. Eles, os homens, acham que a mulher é um objeto, uma posse, uma propriedade deles. E que elas, as mulheres, não podem seguir a vida sem eles, que eles são os donos delas. Então temos que mudar essa situação de machismo que se prolifera”, ressaltou.
Sobre o aumento das denúncias feitas por mulheres vítimas da violência doméstica, Karen foi enfática. “É um fator extremamente positivo. Se a gente reduz o feminicídio, é porque o trabalho de base está funcionando, a medida protetiva está funcionando e as mulheres estão conseguindo romper esse ciclo de violência, que é muito difícil de sair dele”, pontuou.
“Quem trabalha com violência doméstica sabe que a mulher sofre um cárcere psicológico por parte do parceiro, onde ele consegue convencê-la que ela é a culpada daquilo. E tudo isso é um ciclo: uma hora briga, bate e depois faz a pazes e fica tudo bem. Depois começa a ficar ruim de novo, até que começa a bater de novo e as desculpas vêm de novo. E a mulher fica presa pelos filhos, pela situação familiar. E isso não é privilégio das classes menos favorecidas. Qualquer mulher está sujeita a sofrer violência doméstica por parte dos seus companheiros. E quebrar esse ciclo é muito difícil”, destacou ela.
Para a delegada, o primeiro passo, o mais difícil, é mesmo decidir ir à delegacia e registrar a denúncia. Mas, ela acredita que é sempre o melhor caminho. “Ir à delegacia não é fácil. Para ir a uma delegacia tem que quebrar muitas barreiras. O caminho é sempre a denúncia. Sempre”.
“A gente vê histórias de mulheres que são espancadas, como esta da mulher que foi espancada durante horas e horas, onde é comum achar que a culpa é da mulher porque ela se encontrou com o homem que havia acabado de conhecer. As pessoas dizem que a mulher tem culpa porque se envolveu logo no primeiro encontro. Não. Ela é somente vítima. A vítima é só vítima. E ela tem que ser tratada como vítima. O agressor é que é o culpado. Ele é que vai responder pelos atos dele”, concluiu a delegada.
Os casos de assassinatos de mulheres e de feminicídios – estes últimos marcados pela desigualdade de gênero – tiveram uma alta, mas depois caíram nestes últimos quatro anos no Rio Grande do Norte.
Em 2015, o estado somou 111 mortes violentas. Já em 2018, foram 93 casos – uma redução de 16,2%. Comparando apenas os últimos dois anos, a redução foi ainda maior: queda de 37,5%.
Porém, as denúncias de violência doméstica aumentaram. Quase sempre, são relatos de ameaça e agressões físicas. Nestes últimos quatro anos, segundo dados enviados pela Coordenadoria da Defesa das Mulheres e das Minorias (Codimm), o Rio Grande do Norte saiu de um patamar de 3,3 denúncias por dia em 2015, para uma média de 7,8 denúncias diárias ao longo de 2018 – o que significa um aumento de 136% neste período. Comparando apenas os últimos dois anos, também houve um crescimento: 5,4%.
O Portal G1 teve acesso às quantidades de denúncias recebidas (entre 2015 e 2018) por três redes de atendimento responsáveis por analisar e fazer o encaminhamento legal dos relatos de violência contra a mulher no Rio Grande do Norte. São elas:
O Disque 180, que é um disque-denúncia nacional com capacidade de envio dos casos relatados para as secretarias de Segurança Pública e Ministério Público de cada estado.
O Disque 100, do Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, que tem a competência de receber, examinar e encaminhar denúncias e reclamações, além de atuar na resolução de tensões e conflitos sociais que envolvam violações de direitos humanos.
E o 0800-281-2336, que é o disque-denúncia da própria Codimm. Nele, os casos também são analisados e encaminhados à Polícia Civil. Quando necessário, a coordenadoria também dá assistência às vítimas. O número atende 24 horas por dia, inclusive no fins de semana e feriados.
“Há bem pouco tempo as mulheres vítimas de violência ficavam entregues à própria sorte. Com o advento dos movimentos feministas, dos grupos e mulheres que passaram a visitar as comunidades e a conscientizá-las e graças à criação das Delegacias de Mulheres, elas estão saindo cada vez mais de seus lares violentos e fazendo suas denúncias. Ocorre que, o maior problema de violência contra a mulher, a violência de gênero, é um problema educacional. E esse trabalho deve ser feito por todos os segmentos da sociedade. A Codimm, as Delegacias de Mulheres, a Secretaria da Mulher, os movimentos de mulheres, juntos estamos trabalhando para combater este câncer que corrói a nossa sociedade”, disse a delegada Margareth Gondim, coordenadora da Codimm.
Para Bruno Saldanha, advogado e consultor em segurança pública, a redução nos números de feminicídios no estado devem ser analisada com cautela “dada a especificidade do tema e da possibilidade de subnotificação de ocorrências ou enquadramento inadequado de homicídios que na verdade seriam feminicídios, especialmente no interior”, destacou.
Ainda segundo o ele, “o Rio Grande do Norte não deve arrefecer as políticas públicas voltadas à proteção da mulher e os investimentos no segmento devem ser ampliados, pois ainda são muito reduzidos”.
“O trabalho de monitoramento, mapeamento, coleta e análise dos dados criminais devem continuar a ser valorizado pelos entes públicos em geral, especialmente a transparência e rigidez dos dados, porque é a partir deles que toda a cadeia de investimentos e políticas públicas deve orbitar”, acrescentou Saldanha.
Quanto ao aumento das denúncias, o especialista também viu como ponto positivo. “Este crescimento é fruto da conscientização das mulheres sobre os seus direitos, razão pela qual o Estado deve estar preparado para atendê-las com o cuidado e as medidas necessárias a garantir sua segurança quando ameaçada”, frisou.
Já a advogada Kátia Nunes, presidente da Associação dos Advogados do Rio Grande do Norte (AARN), considera que o aumento das denúncias de violência doméstica significa que mais mulheres estão sendo vítimas de agressões, porém, “que também estão tendo mais coragem de romper a barreira do medo e de enfrentar a situação. Contudo, quanto ao feminicídio, apesar da redução no número de vítimas, “ainda não há o que comemorar, pois não podemos admitir a perda de uma única vida e, muito menos, que mulheres vítimas de qualquer violência virem estatísticas”, pontuou.
Fonte: G1RN
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