Vicente Serejo
O caldo de cultura das relações de poder no Brasil ao longo de quinhentos anos tem sido mais de impurezas e distorções do que formador de uma consciência crítica. Ainda não aprendemos a boa lição de que os poderes, assim como as entidades representativas de classes, colegiados e instituições devem ser presididas e nunca chefiadas. A proliferação dos chefes numa sociedade de pouquíssimos líderes acabou por deformar e se cristalizar na base daquele consenso estúpido de que chefe é chefe.
Não é à toa a riqueza de chefes na nossa nomenclatura pública e privada. Chefe político desde antanho, a chefe de polícia, chefe do governo e da nação. É possível que o chefe até se justifique em alguns casos muito específicos. Mas, quase sempre, os chefes são centros que emanam muito mais o autoritarismo do que a noção salutar do estado democrático de direito. Para não falar nos que ainda imaginam que dizer ‘não’ é mais afirmativo do que dizer ‘sim’, no exercício das afirmações pessoais.
É comum assistir ao feio e nem sempre bem disfarçado artifício de confundir conscientemente a função com a pessoa que a exerce. Numa personificação que reduz a entidade a uma propriedade de quem a detém. Some-se a esta distorção o vício de transformar a liturgia de presidir com um poder de mando muitas vezes absurdo, se e quando desaba no descalabro. São fartos os exemplos na própria área jurídica de legalismos tomarem o lugar da legalidade em nome de privilégios corporativistas.
O lixo autoritário vem de longe, desde o Brasil colonial, sobreviveu ao império e resiste até hoje na nossa vida republicana. Quem afastar as dragonas dos chefes militares, emblemas reluzentes dos regimes ditatoriais castrenses, observará que o poder civil não é muito diferente quando resvala para transformar vontades em leis acima dos interesses da Nação. Basta uma decisão tomada em sintonia com o clamor social e logo as pessoas festejam como se não fosse um dever da vida pública.
Até entidades as mais representativas, com um forte lastro histórico na defesa dos direitos da cidadania, cometem o destrambelho de posições insustentáveis a um crivo mínimo de respeito às leis e pactos sociais. É como se perdurasse uma teimosia burra de que pode existir uma instituição acima dos interesses da sociedade. Ou, tanto mais grave, postas a serviço de benefícios pessoais desgarrados dos princípios que a instituem quando desgraçadamente levadas a gestos que dilaceram sua tradição.
Talvez por isso, e pouco a pouco, como um novo aprendizado que exige tempo de maturação, a sociedade vai caldeando suas inquietações e reencontrando seu lugar: a rua. Ora, foi sempre assim, até nas mais antigas e consolidadas democracias. Só a incúria intelectual ainda resiste à consciência crítica que vem sendo construída, luta a luta, pela sociedade brasileira. E já não é mais tão cedo para as instituições desconhecerem essa realidade desassombrada que ocupa as ruas com a força coletiva.
Vicente Serejo é Jornalista e Escritor