CHEGA DE LÁGRIMAS –
A impressão que nos dá quando entes queridos vão desaparecendo de nossa vida se assemelha, subjetivamente, a moléculas se desprendendo do corpo que habitamos, no formato de pingos, para se acumularem no poço de recordações que mantemos no âmago do nosso ser.
Quando jovens não percebemos essa comparação se manifestar, porém, após determinada idade, notamos que a velocidade com que o poço se abarrota de pingos é bem superior àquela que imaginávamos fosse ocorrer. E não há como estancarmos tal evolução, visto que é regida por regras efêmeras que ditam a nossa curta existência.
Tampouco, nenhuma receita infalível compensa ou alivia as consequências do processo doloroso contido no vácuo existencial deixado por essas ausências. Mesmo sem provocações, imagens etéreas das lembranças de seres queridos teimam em vir e voltar, espontaneamente ou ao bel-prazer de comandos para nós desconhecidos.
Aí é quando escapolem lágrimas de saudade e de pesar para lavar a tristeza da alma. Entretanto, as lágrimas não passam de panaceia para amenizar o tal incômodo, ao mesmo tempo suave e doloroso, contido nas recordações de retalhos da vida daqueles entes ausentes.
Exercitando a racionalidade, entendemos essa emotividade como sendo decorrência do fato de estarmos vivos e da instabilidade de nossa própria condição humana. Ou, talvez, do desejo de coexistir para sempre com a felicidade originária das presenças físicas que elegemos como essenciais, e com as quais nos acostumamos sem desejarmos ou imaginarmos perdê-las algum dia.
Na verdade, retrata-se o histórico da existência de cada um de nós, resumido e ampliado pela lente da memória. Um privilégio ou punição criado pela natureza e, imposto, quase tão somente ao adulto. Talvez porque o jovem ainda não tenha acumulado o suficiente de perdas e ganhos para perceber, na forma de lembranças, o quinhão de benesses ou de purgações ao qual fez jus na vida.
Não formularam ainda antídotos para amenizar as recordações daqueles que nos foram caros e se bandearam para estágios enigmáticos da inexistência. Daí se tornar impossível ocupar o vão deixado por eles, integrantes de nossas histórias de vida, em determinadas datas especiais.
Ano após ano somos instados a travar o embate de cartas marcadas entre a matéria e a volatilidade da lembrança, embora sabedores do resultado tendencioso de sermos incapazes de domar a nossa sensibilidade.
Sem podermos manifestar a palavra de afeto, o abraço apertado ou o beijo carinhoso, pranteamos nossos falecidos queridos derramando sobre suas lembranças pingos de saudade. Nunca, como nestes dois últimos anos, derramamos tantas lágrimas para prantear as memórias de entres queridos que deixaram, prematuramente, o nosso convívio. Pior ainda, pelo fato de os vermos saudáveis num momento e, noutro, sabermos estarem agonizando seus últimos instantes entre nós.
A minha quota de lágrimas já foi derramada. Não possuo matéria prima para produzir outras. Meu receio maior é que, diante da amplitude do número de entes queridos tornados voláteis, instale-se no meu ser a insensibilidade e eu considere uma pandemia apenas um acidente incontornável da natureza.
Chega de lágrimas!
José Narcelio Marques Sousa é engenheiro civil
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