Adjetiva-se de cinéfilo a quem ama o cinema como arte ou forma de lazer. Acontece, que para Natércio cinéfilo era isso e muito mais. Ele se tornou um indivíduo vidrado, obcecado por tudo relacionado a cinema. Sua mania extrapolou o limite do razoável e ultrapassou o estágio do engraçado para enveredar pelo ridículo. Pelo menos dezoito das horas de seu dia, ele as dedicava ao cinema. Daí a razão para o seu conhecimento abrangente sobre a sétima arte.
Se alguém o provocasse perguntando, por exemplo: “Natércio, o que você nos tem a dizer acerca do filme ‘Asas’?”. Certamente, ouviria o seguinte: “Asas é a tradução de ‘Wings’, película americana dirigida por William Wellman, protagonizada por Clara Bow e Charles Rogers, ganhador do Oscar de Melhor Filme, em 1929, na primeira premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood”.
Natércio se deleitava ao mostrar o amplo conhecimento sobre cinema. Tanto é que não se acabrunhava ante qualquer provação ou provocação. Certa feita, num ping-pong sobre o “Oscar” em programa ao vivo na televisão, ele foi aclamado pela plateia pela versatilidade demonstrada: “Qual a produção mais cara da história do cinema?” Ele respondeu: “Titanic”. “Em 1997 que filme ganhou 9 Oscar?”. “O Paciente Inglês”. “Qual foi o primeiro filme brasileiro a ser indicado ao Oscar?”. “Central do Brasil”. “Que filme ganhador do Oscar em 1983 levou 20 anos para ser concluído?”. “Gandhi”. Não tinha jeito, ele ganhava todas.
Para se firmar como o suprassumo absoluto do conhecimento cinematográfico de todos os tempos, deveria passar pela maratona devastadora do programa de “Leleco Desmancha Prazer”. Ele inscreveu-se e a divulgação foi ampla para o embate Cinéfilo x Apresentador, com direito a premiação milionária.
Eis que chegou o grande dia, e lá se encontrava Natércio diante das câmeras e do ameaçador “Desmancha Prazer”. A primeira pergunta deu noção do que seria a maratona: “Onde nasceu e qual o nome completo do maestro apelidado de ‘O Rei da Rumba’, protagonista de vários musicais de Hollywood?”. Esbanjando tranquilidade e denotando um teatral ar de enfado, Natércio respondeu: “Ele nasceu na Catalunha, e quando tinha três anos de idade sua família se mudou para Havana, Cuba. Daí a denominação de catalão-cubano. Chamava-se Francisco d’Asis Xavier Cugat Mingall de Bru i Deulofe, conhecido mundialmente como Xavier Cugat”.
Veio a segunda pergunta: “É comum ouvirmos em mambos, um ‘Uuuú!’ gutural acentuando o compasso da música. Em qual filme, estrelado por uma atriz morena e outra loura, toca-se um dos mais famosos mambos da época, onde vários ‘Uuuús’ são intercalados à melodia”. Natércio ficou pensativo porque a pergunta era complexa e parecia fora do contexto. Mesmo assim, não negou fogo: “O filme é ‘O Alforje do Diabo’ (Underwater), 1955, de John Sturges, protagonizado pela morena Jane Russell e a loura Lori Nelson. O mambo é ‘Cherry Pink and Apple Blossom White’ ou ‘Cerezo Rosa’, ou ainda, na versão brasileira, Cerejeira Rosa”. A plateia que acompanhava a resposta certa no painel postado fora da visão de Natércio exultou.
“Quem gritava os ‘uuús’ nesse mambo?” – perguntou Leleco de chofre. E Natércio esbanjando segurança, respondeu: “Ora! O próprio maestro da orquestra, Perez Prado, ‘O rei do mambo’”. O público torcia pelo cinéfilo, quando veio e golpe fatal: “E quem apertava os testículos do maestro para ele gritar os ‘uuuús’?”.
A pergunta deixou Natércio sem fala e o fez perder o prêmio por não raciocinar direito. Enquanto isso, sua torcida desesperada, aguardava ele pronunciar a resposta correta postada, ali mesmo, no painel atrás dele: “Ninguém!”.
José Narcelio Marques Sousa é engenheiro civil. [email protected]